Do curso 
de 1960

Henrique Carmona da Mota

Uma vida de exemplos

VOICEmed #2

Henrique Carmona da Mota é um homem de modelos. E grato pelos caminhos que a vida lhe traçou e que soube aproveitar. A conversa começa tímida, junto ao fogo da lareira que, de tempos a tempos, vai avivando enquanto faz uma pausa para pensar. Peço-lhe que me conte sobre a sua infância, o sítio onde nasceu. “Numa aldeia do concelho de Tomar, Porto da Laje. Com jota, não com guê”, responde-me. Está dado o pontapé de saída para se conhecer um pouco mais do médico que foi diretor do antigo Hospital Pediátrico.

Filho mais velho de um clínico geral, que também tirou o curso em Coimbra, Henrique Carmona da Mota é o mais velho de oito, seis irmãos e duas irmãs. “Uma casa cheia, portanto”, elucida. Tal como a aldeia em que nasceu e cresceu. “Não era propriamente rural, mas sim já meio vila, com uma escola primária e muitos miúdos”. A quase inexistência de brinquedos, fruto do tempo da Guerra e encorajada pelo pai, fomentava o engenho. Recorda-se de os fabricar, com os amigos, a partir de canas que cresciam à beira da ribeira, recorrendo às ferramentas dos demais pais, os que eram ferreiros e carpinteiros, entre outros. “Hoje isso parece pré-história, parece inacreditável como é que os miúdos podiam viver sem televisão, sem net, sem brinquedos”, reflete.
Mobirise

São as primeiras recordações de que fala. Que o levam a quem moldou a figura que hoje compõe quem é e quem foi Henrique Carmona da Mota. “O meu pai era um clínico geral de primeira água. Provavelmente, é por isso que eu sou médico, que eu escolhi medicina. Ele foi, em muitos pontos de vista, o meu mestre. Mestre em todos os aspetos da Medicina e mestre na vida. Ele e a professora primária”. Há coisas que não se esquecem, como o nome da professora. Amélia. “Uma professora muito exigente, que nos ensinava, numa época em que éramos obrigados a aprender, o essencial sem o qual a vida futura não fica solidamente fundamentada”. Desses tempos ficaram as ligações aos amigos de escola, que partilharam bancos na sala de aula. Ainda hoje, diz, se encontram uma vez por ano para recordarem o que fez a diferença na vida de cada um.


O meu pai era um clínico geral de primeira água.
Provavelmente, é por isso que eu sou médico, que eu escolhi medicina.

Henrique faz, depois, o liceu em Tomar, por ser o mais perto, num colégio dirigido por outro ex-estudante de Coimbra, Raúl Lopes. A instituição acolhia alunos difíceis, sendo por isso destino para crianças de todo o país e também das colónias ultramarinas. Havia, consequentemente, um espetro social e cultural alargado ao qual o jovem estudante já estava habituado pela sua vivência na aldeia, mas que, ainda assim, não deixou de o moldar uma vez mais. “Isso, a qualidade do ensino e a figura tutelar do Dr. Raúl Lopes ajudaram-me a construir a pessoa que sou hoje”. A Medicina vem, de forma quase natural, por influência paterna. “A figura de médico era ambivalente. Por um lado, admirava a dedicação, qualidade e interesse que o meu pai tinha pelos doentes e pela sua profissão, mas, por outro lado, aquele tipo de vida, estar disponível 24 horas por dia, 366 dias por ano, arrepiava-me. Mas enfim, lá me decidi e escolhi Medicina”, confidencia Henrique Carmona da Mota.

Mobirise

Chegado a Coimbra, o então caloiro de Medicina ficou instalado numa espécie de república na rua dos Militares, na zona onde hoje se erguem os departamentos de Química e de Física, “um palecete magnífico mas muito degradado”. Estava a cinco minutos das aulas e vivia rodeado de pessoas que, tal como ele, também respiravam universidade, viviam de ou para ela. E, de novo, a multiculturalidade permanece na vida de Henrique. “Lá vivia gente de muita origem, havia uma grande colónia de cabo-verdianos, outra minhota, pessoas de toda a natureza e de todos os cursos”. Como o próprio diz, a adaptação estava novamente facilitada. Havia uma partilha de tudo, inclusive da própria vivência em grupo. “Íamos às aulas, almoçávamos na república e depois, quando não havia aulas à tarde, íamos sistematicamente em grupo, à Baixa tomar o café. Estávamos por lá até às três e depois cada um ia à sua vida, o que significava alguns, eu incluído, subíamos outra vez aquela ladeira toda, para estudar ou fazer o que houvesse a fazer”.


Então, a surpresa, agradabilíssima, de ver que havia um estudante
de Medicina que dialogava taco-a-taco com o Dr. Barreto 

Uma das pessoas que mais o impressionou na república foi um estudante de Direito, quarto ou quinto ano. “O Dr. Barreto. Tinha uma característica que destoava naquele mito que eu tinha dos doutores, lia A Bola. Um dia, com atrevimento, perguntei-lhe porquê”. Henrique não percebia aquela escolha literária de quem, pelo quase endeusamento geral, tinha um último dizer nas discussões que se davam na república. A resposta, embora não desfazendo o mito, acabou por surpreender. A Bola era então dirigida por Cândido de Oliveira, um jornalista perseguido pelo regime e que, não podendo escrever nos jornais generalistas, refugiou-se no jornalismo desportivo. “A qualidade dos textos e o subentendido que deles vinha, em especial quando uma equipa portuguesa jogava no estrangeiro, onde não tínhamos ideia nenhuma do que se passava, a qualidade literária e a informação que vinha, subreptícia, como toda a informação filtrada daquele tempo, foi para mim uma descoberta”. E relata outro momento que marcou a sua passagem pela dita república. “Andava eu no terceiro ano e quem é que vem para a minha república? O Linhares Furtado, que era então já quartanista. Então, a surpresa, agradabilíssima, de ver que havia um estudante de Medicina que dialogava taco-a-taco com o Dr. Barreto”. “São estas variedades de modelos, de mitos, de ídolos que fazem a nossa formação”, acrescenta, antes de falar do curso.









“A universidade, naquela altura, não era propriamente estimulante, mas o certo é que havia alguns professores que eram realmente modelares”. Henrique Carmona da Mota parte para falar de outro Henrique, Henrique de Oliveira, docente de Bacteriologia, “um excelente pedagogo, de uma cultura vastíssima e com uma humanidade...”. Na sua memória de tempos da faculdade cabem também, entre outros, os nomes de Vaz Serra, Gouveia Monteiro, Renato Trincão e Morais Zamith. E mesmo entre aqueles professores que não marcavam tanto, houve quem arranjasse forma de se gravar indelevelmente na sua memória. “Ele dava-nos uma imagem do que era a Genética: "Nós somos um comboio em cujas carruagens viajam os nossos antepassados"”. O elogio a um “modelo do que é o verdadeiro ensino”.

De repente, do nada, conseguimos criar um grupo (...)
A vida é assim, circunstâncias que a sorte ajuda ou impede

Por fim, a escolha da Pediatria enquanto especialidade para a vida. A dois momentos, nas férias passadas no consultório do pai e no estágio final do curso. Aí, encontrou “um interno que realmente confirmou que a Pediatria era aquilo que queria, e que aquele modelo era o que me interessava, que considerava essencial, fundamental - Nicolau da Fonseca”. Nota-se respeito na voz de Henrique Carmona da Mota, e alguma tristeza também, quando conta que apesar de lhe reconhecerem enorme mérito, as autoridades e a faculdade de medicina não deram o devido destaque a Nicolau da Fonseca. Depois, “o paradoxo da vida... Já sou assistente quando vem o 25 de abril. Estava em Londres, num estágio, e vim imediatamente para Coimbra assumir a direção do serviço. Nicolau da Fonseca estava mobilizado como médico geral na Guiné. Com o 25 veio embora e convidei-o como assistente. Então sou eu, que aprendi com ele, que depois o vou convidar para assistente. As voltas que o mundo dá...”, afirma Henrique Carmona da Mota, sobre uma das muitas coincidências, sortes, que estiveram na origem dessa nova etapa da Pediatria em Coimbra. Seguiram-se dois outros médicos que regressaram de Lausanne, Suíça: Torrado da Silva e Luís Lemos. “De repente, do nada, conseguimos criar um grupo... Se naquela altura tivesse que escolher das pessoas que conhecia para começar de novo uma escola e um hospital, eram esses que teria escolhido. A vida é assim, circunstâncias que a sorte ajuda ou impede”.


Na vida do pediatra seguiram-se o novo, à data, Hospital Pediátrico, e a sua direção. Não gosta de especificar ou pormenorizar, mas afirma com especial orgulho “a possibilidade de fazer o que no próximo século, e nos dois séculos anteriores, ninguém vá fazer ou tivesse feito. Com a ajuda de gente notável e uma filosofia de vida semelhante à minha”. Fala do ser pediatra e do sentimento deprimente que é ver uma criança entrar num hospital. “É preciso misturar com o prazer enorme que é ver sorrir uma criança doente”. Nos seus primeiros tempos, refere, a grande maioria das crianças que não morriam tinha uma recuperação completa. Mas havia dois flagelos que marcavam quem trabalhava na área. “Um eram as neoplasias, o cancro numa criança, e o outro era o acidente - como é que é possível que uma criança sofra? É incompreensível a justificação metafísica, filosófica de uma criança a sofrer. É qualquer coisa de contranatura, para ser educado”. Nas palavras de Henrique Carmona da Mota, as coisas boas, muitas, compensavam o que ocorria de mau, mesmo que ficasse marcado. “Nunca se esquece uma criança que nos morreu sem podermos fazer nada. Não quer dizer que me esteja sempre a lembrar, mas de vez em quando surge. Uma sensação de impotência, mesmo que se tenha a consciência que não havia nada a fazer. Claro que o tempo amolece, desvanece, atenua, e sobretudo a memória vai-se esquecendo dessas coisas, que é uma das suas boas características”.


É incompreensível a justificação metafísica, filosófica de uma criança a sofrer.
É qualquer coisa de contranatura, para ser educado 

Olha para o seu antigo local de trabalho com tristeza. Não entende o abandono a que foi votado. “Sabe-se que se vai construir um novo porque aquele já não podia albergar o volume que se lhe exigia. Sabe-se tudo isso, que daqui a um ano vai ficar livre, daqui a um mês vai ficar livre, que ficou livre, vazio, há um mês, um ano, dois anos, três anos. Deixá-lo ao abandono completo, que foi devastado por quem quis lá ir, é um sinal de que falta uma noção cívica. Não houve um único movimento em Coimbra contra isto e continua a não haver”. Fala também, com amargura, de incúria política, local e nacional, na manutenção do que é património de todos.







A conversa aproxima-se do final. Fala da Pediatria atual, “muito diferente daquela que era no meu tempo e daquela que eu considero que deve ser”, mas em que o fundamental se mantém. É preciso, na sua opinião, trabalhar uma zona de equilíbrio entre a Medicina clássica e o ensino, a Pedagogia, para resolver os problemas que não concebe como Pediatria, “problemas de comportamento, de educação, de ensino, de aprendizagem”. Vai, duas vezes por semana, ao novo Hospital Pediátrico, ao qual foi atribuído o seu nome. Continua a ensinar e assiste à “autoavaliação dos alunos perante o doente concreto”, um pouco para compensar a falta de tempo no antigamente.

Os alunos de Medicina são escolhidos, e lamento dizê-lo
hoje como disse há mais de 20 anos, de uma maneira absurda 

Há uma nota final de preocupação em Henrique Carmona da Mota, quando lhe pergunto o que falta à Medicina atual. “Falta muito. Provavelmente, os velhos professores do meu tempo diziam a mesma coisa. Aquilo que ganhou em tecnologia, em ciência, perdeu em espontaneidade, em contacto humano, em atitudes”. Pensa que isso possa estar na forma como os alunos são seriados para ingressar no Ensino Superior: “Os alunos de Medicina são escolhidos, e lamento dizê-lo hoje como disse há mais de 20 anos, de uma maneira absurda. Aliás, todos os universitários”. No seu tempo, relembra, ia para medicina quem queria, não existindo esse monopólio de notas elevadas que se verifica atualmente. “Os alunos de Medicina entrariam se tivessem uma classificação mínima de dezasseis no secundário. Como não se conhecem critérios sólidos que permitam saber como um jovem vai ser como médico, quais são as qualidades, então o melhor critério será o acaso. Todos aqueles que quisessem, com mais de 16, eram candidatos e depois era uma questão de sorteio”. Explica que, dessa forma, haveria “uma variedade social enorme, de capacidades, competências, e não haveria padronização, segmentação, em especial aquela que é mais perigosa, saber que um médico tem de ser o mais apto na luta pela vida”. Sabe que não é uma ideia fácil, nem popular, mas gostava que os políticos e as universidades tivessem coragem de a colocar em prática.

Henrique Carmona da Mota pode não ser um homem de muitas palavras, mas compensa nas certezas de quem sabe como gostava que as coisas fossem. De quem soube aprender com tudo e com todos.


por Paulo Sérgio Santos