Uma vida de exemplos
São as primeiras recordações de que fala. Que o levam a quem moldou a figura que hoje compõe quem é e quem foi Henrique Carmona da Mota. “O meu pai era um clínico geral de primeira água. Provavelmente, é por isso que eu sou médico, que eu escolhi medicina. Ele foi, em muitos pontos de vista, o meu mestre. Mestre em todos os aspetos da Medicina e mestre na vida. Ele e a professora primária”. Há coisas que não se esquecem, como o nome da professora. Amélia. “Uma professora muito exigente, que nos ensinava, numa época em que éramos obrigados a aprender, o essencial sem o qual a vida futura não fica solidamente fundamentada”. Desses tempos ficaram as ligações aos amigos de escola, que partilharam bancos na sala de aula. Ainda hoje, diz, se encontram uma vez por ano para recordarem o que fez a diferença na vida de cada um.
Henrique faz, depois, o liceu em Tomar, por ser o mais perto, num colégio dirigido por outro ex-estudante de Coimbra, Raúl Lopes. A instituição acolhia alunos difíceis, sendo por isso destino para crianças de todo o país e também das colónias ultramarinas. Havia, consequentemente, um espetro social e cultural alargado ao qual o jovem estudante já estava habituado pela sua vivência na aldeia, mas que, ainda assim, não deixou de o moldar uma vez mais. “Isso, a qualidade do ensino e a figura tutelar do Dr. Raúl Lopes ajudaram-me a construir a pessoa que sou hoje”. A Medicina vem, de forma quase natural, por influência paterna. “A figura de médico era ambivalente. Por um lado, admirava a dedicação, qualidade e interesse que o meu pai tinha pelos doentes e pela sua profissão, mas, por outro lado, aquele tipo de vida, estar disponível 24 horas por dia, 366 dias por ano, arrepiava-me. Mas enfim, lá me decidi e escolhi Medicina”, confidencia Henrique Carmona da Mota.
Chegado a Coimbra, o então caloiro de Medicina ficou instalado numa espécie de república na rua dos Militares, na zona onde hoje se erguem os departamentos de Química e de Física, “um palecete magnífico mas muito degradado”. Estava a cinco minutos das aulas e vivia rodeado de pessoas que, tal como ele, também respiravam universidade, viviam de ou para ela. E, de novo, a multiculturalidade permanece na vida de Henrique. “Lá vivia gente de muita origem, havia uma grande colónia de cabo-verdianos, outra minhota, pessoas de toda a natureza e de todos os cursos”. Como o próprio diz, a adaptação estava novamente facilitada. Havia uma partilha de tudo, inclusive da própria vivência em grupo. “Íamos às aulas, almoçávamos na república e depois, quando não havia aulas à tarde, íamos sistematicamente em grupo, à Baixa tomar o café. Estávamos por lá até às três e depois cada um ia à sua vida, o que significava alguns, eu incluído, subíamos outra vez aquela ladeira toda, para estudar ou fazer o que houvesse a fazer”.
Uma das pessoas que mais o impressionou na república foi um estudante de Direito, quarto ou quinto ano. “O Dr. Barreto. Tinha uma característica que destoava naquele mito que eu tinha dos doutores, lia A Bola. Um dia, com atrevimento, perguntei-lhe porquê”. Henrique não percebia aquela escolha literária de quem, pelo quase endeusamento geral, tinha um último dizer nas discussões que se davam na república. A resposta, embora não desfazendo o mito, acabou por surpreender. A Bola era então dirigida por Cândido de Oliveira, um jornalista perseguido pelo regime e que, não podendo escrever nos jornais generalistas, refugiou-se no jornalismo desportivo. “A qualidade dos textos e o subentendido que deles vinha, em especial quando uma equipa portuguesa jogava no estrangeiro, onde não tínhamos ideia nenhuma do que se passava, a qualidade literária e a informação que vinha, subreptícia, como toda a informação filtrada daquele tempo, foi para mim uma descoberta”. E relata outro momento que marcou a sua passagem pela dita república. “Andava eu no terceiro ano e quem é que vem para a minha república? O Linhares Furtado, que era então já quartanista. Então, a surpresa, agradabilíssima, de ver que havia um estudante de Medicina que dialogava taco-a-taco com o Dr. Barreto”. “São estas variedades de modelos, de mitos, de ídolos que fazem a nossa formação”, acrescenta, antes de falar do curso.
Por fim, a escolha da Pediatria enquanto especialidade para a vida. A dois momentos, nas férias passadas no consultório do pai e no estágio final do curso. Aí, encontrou “um interno que realmente confirmou que a Pediatria era aquilo que queria, e que aquele modelo era o que me interessava, que considerava essencial, fundamental - Nicolau da Fonseca”. Nota-se respeito na voz de Henrique Carmona da Mota, e alguma tristeza também, quando conta que apesar de lhe reconhecerem enorme mérito, as autoridades e a faculdade de medicina não deram o devido destaque a Nicolau da Fonseca. Depois, “o paradoxo da vida... Já sou assistente quando vem o 25 de abril. Estava em Londres, num estágio, e vim imediatamente para Coimbra assumir a direção do serviço. Nicolau da Fonseca estava mobilizado como médico geral na Guiné. Com o 25 veio embora e convidei-o como assistente. Então sou eu, que aprendi com ele, que depois o vou convidar para assistente. As voltas que o mundo dá...”, afirma Henrique Carmona da Mota, sobre uma das muitas coincidências, sortes, que estiveram na origem dessa nova etapa da Pediatria em Coimbra. Seguiram-se dois outros médicos que regressaram de Lausanne, Suíça: Torrado da Silva e Luís Lemos. “De repente, do nada, conseguimos criar um grupo... Se naquela altura tivesse que escolher das pessoas que conhecia para começar de novo uma escola e um hospital, eram esses que teria escolhido. A vida é assim, circunstâncias que a sorte ajuda ou impede”.
Na vida do pediatra seguiram-se o novo, à data, Hospital Pediátrico, e a sua direção. Não gosta de especificar ou pormenorizar, mas afirma com especial orgulho “a possibilidade de fazer o que no próximo século, e nos dois séculos anteriores, ninguém vá fazer ou tivesse feito. Com a ajuda de gente notável e uma filosofia de vida semelhante à minha”. Fala do ser pediatra e do sentimento deprimente que é ver uma criança entrar num hospital. “É preciso misturar com o prazer enorme que é ver sorrir uma criança doente”. Nos seus primeiros tempos, refere, a grande maioria das crianças que não morriam tinha uma recuperação completa. Mas havia dois flagelos que marcavam quem trabalhava na área. “Um eram as neoplasias, o cancro numa criança, e o outro era o acidente - como é que é possível que uma criança sofra? É incompreensível a justificação metafísica, filosófica de uma criança a sofrer. É qualquer coisa de contranatura, para ser educado”. Nas palavras de Henrique Carmona da Mota, as coisas boas, muitas, compensavam o que ocorria de mau, mesmo que ficasse marcado. “Nunca se esquece uma criança que nos morreu sem podermos fazer nada. Não quer dizer que me esteja sempre a lembrar, mas de vez em quando surge. Uma sensação de impotência, mesmo que se tenha a consciência que não havia nada a fazer. Claro que o tempo amolece, desvanece, atenua, e sobretudo a memória vai-se esquecendo dessas coisas, que é uma das suas boas características”.