Apesar de ouvirmos relatos de algumas situações de incumprimento das medidas de restrição impostas pelo estado de emergência e agora estado de calamidade, o facto é que a maioria da população nacional tem demonstrado ser compreensiva e cooperante quanto às necessárias medidas de prevenção para evitar a propagação do vírus. Esperava este grau de cooperação e entendimento por parte da população, ou contava com alguma renitência e desconfiança quanto à real gravidade deste vírus?
Esta é uma situação completamente nova. Na história da humanidade, nunca se colocou uma população saudável em quarentena. Em si, isto é, à partida, quase como uma experimentação em termos globais. Mas, de facto, não havia outra opção, e nós dissemos muitas vezes que não havia ‘plano B’. Aliás, onde não foram tomadas algumas medidas, houve resultados catastróficos em termos de um grande aumento da mortalidade, de consequências em termos sociais e de alguma destruição dos sistemas de saúde.
Nesse sentido, foi agradável ver que, de uma forma geral, houve uma compreensão por parte da nossa população acerca da importância de seguir as recomendações propostas. E é curioso porque, embora sejam utilizados termos muito fortes, como “emergência” ou “calamidade”, em Portugal foram mais recomendações do que obrigações, ao contrário de outros países, em que houve, de facto, obrigatoriedade, com a chamada quarentena obrigatória.
Aqui, penso que é muito importante o papel das autoridades. Ou seja, nós [CEMP] podemos fazer um conjunto de recomendações, mas não somos o Governo ou a autoridade da Saúde e, por isso, a forma como essas autoridades transmitem, depois, essa informação, é crucial.
Esse tem sido também um dos pontos que nós temos tido em conta, que é a importância de, uma vez tomado um conjunto de decisões, estas serem transmitidas com confiança e robustez suficiente, para que as pessoas se sintam apoiadas e sintam que estão a seguir instruções credíveis e para seu benefício. A forma como é transmitida e veiculada a informação é muito importante. Temos visto como, em alguns países, as hesitações ou as formas menos assertivas de comunicar com a população têm tido resultados menos positivos.
Claro que há sempre comentários, que eu diria até que são legítimos, relativos à vontade que as pessoas têm de sair e de estarem menos confinadas. Ninguém quer estar confinado e obviamente que todos gostaríamos que isto não tivesse acontecido. Mas uma coisa é o desejo, e outra é a realidade. Muitas vezes digo isto a brincar aos meus doentes, embora falando a sério, que a diferença entre um médico e um político é que o médico diz aquilo que o doente tem de ouvir: neste caso concreto, diz aquilo que a população tem de ouvir. E o político diz, muitas vezes, aquilo que acha que uma pessoa quer ouvir.
E, portanto, entre aquilo que é a realidade e aquilo que é um desejo que todos temos vai uma distância muito grande, daí ser tão importante uma adequada gestão da comunicação que é feita com a população, para que esta perceba e siga as recomendações dadas. Por exemplo, em relação à utilização de máscaras, nós fomos muito críticos, porque houve, de facto, uma hesitação demasiado prolongada que não nos pareceu adequada. Aliás, nem compreendemos muito bem a razão pela qual a recomendação do seu uso demorou tanto tempo. Isso fez com que as pessoas ficassem hesitantes, o que acontece quando há algum tipo de discordância entre alguns a dizer uma coisa e outros a dizer o oposto. É uma situação que cria estados de alguma angústia e ansiedade, que poderiam ser evitados com uma comunicação mais assertiva e verdadeira. Não nos podemos esquecer que, quando o presidente Trump disse que uma das formas de tratamento deste vírus poderia ser a ingestão de lixívia, no dia seguinte houve cento e tal pessoas internadas por intoxicações resultantes desta ingestão, e houve pessoas que morreram por isso. Isto mostra o papel da autoridade a dizer alguma coisa.
É presidente do CEMP, e é também diretor de uma Escola Médica [Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa]. Como têm decorrido a investigação e o ensino nestas novas e diferentes condições?
São vários os desafios que temos enfrentado. Como sabe, as Escolas Médicas foram as primeiras a encerrar as suas atividades presenciais, mas, de facto, nunca encerrámos. O grande desafio foi perceber como manter alguma atividade e adaptar o ensino, para que não houvesse uma quebra total no ensino da Medicina. E devo dizer que foi algo que até a mim – que sou muito positivo e pró-ativo – me surpreendeu, a forma fantástica como, em 24 horas, se conseguiu montar um sistema de ensino à distância, com uma mobilização completa dos alunos, docentes, funcionários e pessoas ligadas ao audiovisual, o que nos permitiu manter uma atividade contínua, sem que existisse uma quebra no ensino.
A investigação sofreu um bocadinho, sobretudo na fase em que estivemos praticamente encerrados. Mantivemos uma atividade residual, mas muito ligada à COVID. Tivemos um laboratório a funcionar para a realização de testes de diagnóstico e mantivemos também um laboratório de apoio a testes genéticos para doentes oncológicos que, de certa maneira, condicionavam algum tipo de estratégias terapêuticas.
Mantivemos uma atividade basal em áreas específicas, muito ligadas a este problema que estamos a viver e, agora, começámos a reabrir a atividade normal. Estamos a começar a abrir de forma progressiva, prudente e cautelosa. Alguns laboratórios de investigação já estão a começar a funcionar, não de uma forma completa, como é óbvio, mas já a desenvolver algum tipo de atividade. Estamos a monitorizar esta atividade de forma muito rigorosa, porque entendemos que seria dramático se, por qualquer motivo, isto não corresse bem por querermos ir depressa demais, e, com isso, tivéssemos de voltar a recuar. Portanto, quer em termos de ensino, quer em termos de investigação, não parámos.
Claro que a parte clínica também não parou. O meu Serviço [Cardiologia] esteve também envolvido em toda esta situação. Houve um facto menos positivo, que se verificou no País e também de forma global, que foi uma quebra significativa no número de doentes que recorreram à urgência com enfarte do miocárdio, AVC [Acidente Vascular Cerebral] ou patologias agudas. Isto é muito preocupante. Alguns dos casos que tivemos foram de doentes que vieram já tardiamente. Tivemos, por exemplo, situações de rotura miocárdica, que não havia já há algum tempo e, no mesmo dia, tivemos dois casos.
No CEMP, levantámos também esta questão: agora, estamos muito virados para o “inimigo público número 1”, mas não nos podemos esquecer que as outras doenças e doentes não desapareceram. Neste momento, a atividade médica está a ser reativada e readaptada. Estamos a estabelecer regras de prioridade para começarmos a fazer os procedimentos eletivos. Vamos avaliar e monitorizar a situação para ver até onde podemos ir, tentando recuperar, de forma responsável e progressiva, a atividade e uma nova normalidade, como agora se diz.
E que lições há a retirar desta experiência, tão desafiante quanto inédita? Lições essas que podem ser aos níveis pessoal, profissional ou até social. O que podemos aprender com tudo isto?
Bom, há várias lições. Acho que uma das principais é a importância que a Ciência e a Medicina têm em situações como esta, é um reforço da comunidade científica e um apoio a um sistema nacional de saúde, algo por que temos vindo a pugnar desde sempre. Todos se viraram agora para as classes científica e médica, como se, de repente, tivéssemos de ter uma vacina ou um tratamento e tivéssemos de resolver o problema. Não nos podemos esquecer que, há uns meses, andavam a agredir profissionais de saúde e houve cortes naquilo que era o apoio às atividades científicas e aos sistemas nacionais de saúde.
Mas acho que essa é uma das grandes lições: a sociedade não pode viver sem Ciência e sem um bom sistema de saúde. Há uns meses, ninguém imaginaria esta situação e, de repente, viu-se a importância de ter um sistema nacional de saúde capaz de dar uma resposta adequada. Falo em sistema e não em serviço, mas em sistema como um todo, que deve ser reforçado.
A Saúde é uma área fundamental. Tenho dito isto em todas as entrevistas, mesmo antes desta situação. Quando se pergunta à população qual é o principal bem que quer preservar, na maior parte dos casos, cerca de 90 por cento dos casos, as pessoas respondem que é a saúde. E o investimento em saúde não tem sido o ideal: agora, vimos a importância que isso tem. A Saúde e a Ciência são fundamentais. Infelizmente, a humanidade esquece-se depressa, mas diria que, em termos globais, esta é a grande lição.
Claro que, depois, houve aqui alguns aspetos interessantes, como a solidariedade entre as pessoas. E, se quisermos ser um bocadinho mais filosóficos, o modo como tudo isto acaba por ser uma reação da natureza, em termos daquilo que vários grupos científicos apontavam como necessário e urgente, em termos ambientais.
Foi preciso uma pandemia, uma calamidade como esta, com consequências muito negativas, para nos fazer focar em aspetos como a família e alguns valores que, muitas vezes, estão esquecidos. De repente, surge isto e a vida muda completamente. Essa é outra lição: deixarmos o nosso egoísmo, a ideia de que temos as coisas garantidas e que somos invencíveis. Afinal, mostrou-se que um vírus consegue pôr toda a gente em casa, consegue retrair as maiores potências a nível mundial e deixá-las sem capacidade de responder adequada ou rapidamente.
Isto não se paga, não se compra, não há bomba atómica ou guerra que resolva este problema. Diria que esta é também uma grande lição de humildade para o ser humano. No fundo, somos mesmo muito pequeninos.
por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Fausto Pinto