Vivemos momentos difíceis, que mesmo os mais pessimistas não antecipariam. São tempos de mudança, que deixarão marcas profundas na nossa sociedade e na forma de nos relacionarmos. Povos tradicionalmente mais afetuosos terão de repensar e encurtar as suas manifestações de alegria, partilha, ternura e compaixão.
O medo, a desconfiança e o desconforto que esta guerra gerou em todos nós vão, seguramente, passar a retrair os nossos ímpetos mais calorosos, a controlar a meiguice dos nossos gestos, a toldar as nossas manifestações mais fogosas e entusiásticas. As cicatrizes que esta guerra deixa podem descaracterizar-nos e desfigurar-nos, ao perdermos alguma da nossa afetuosa essência latina.
Mas este é também o momento de trazer à tona o que de melhor há em cada um de nós. Fazendo jus ao sábio ditado popular “a necessidade aguça o engenho”, o espírito ‘desenrasca’, tão reconhecidamente ‘tuga’, muito jeito dá para, nas condições precárias e delicadas que estamos a viver, encontrar soluções engenhosas para fazer face às dificuldades e carências.
E a ciência e os cientistas são um bom exemplo disto. É incrível a adesão e mobilização de toda a comunidade científica, e institutos de investigação, em torno de uma causa que é muito mais do que geracional, social ou territorial. O vírus atinge indiscriminadamente, sem dó nem piedade, países ricos e pobres, liberais e conservadores, repúblicas e monarquias, ditaduras e democracias. É um problema à escala global, como são os problemas que os cientistas estão habituados a resolver. Nós não queremos conhecer e tratar demências, cancros ou doenças cardiovasculares dos portugueses.
O que ambicionamos alcançar, pretende-se que beneficie todos, independentemente da raça, cor, religião ou nacionalidade. E é isso mesmo que desejamos agora, se nos deixarem. Toda a comunidade científica se uniu para, de uma forma generosa, abnegada e empenhada (atrever-me-ia a dizer, também, de um forma apaixonada, pois é assim que os cientistas vivem cada dia, para a sua ciência) ajudar a ultrapassar mais um momento difícil da nossa historia civilizacional, que tantas contrariedades já soube ultrapassar.
É fruto do muito trabalho e dedicação destes mesmos cientistas que hoje podemos almejar encontrar, em breve, uma vacina ou tratamento. Fala-se muito do potencial da cloroquina, já há muito usado em outras patologias, para o combate ao SARS-CoV-2. É bom que se perceba que o seu uso clínico, nomeadamente no âmbito da COVID-19, só é possível graças à muita investigação fundamental que foi desenvolvida, para hoje percebermos o seu mecanismo de ação e o seu potencial terapêutico. Esta é uma prova (mais uma, caso ainda fosse necessário prová-lo) que o investimento na ciência dita fundamental é essencial para se poder chegar a novas formas de diagnóstico e terapêutica.
É altura dos mais céticos, que menorizam e desprezam a investigação básica, perceberem que o investimento nesta área, que nos permite perceber como tudo começa, é essencial para que possamos ter novos tratamentos, que salvem vidas. A generosidade e dedicação das centenas de cientistas (desde os mais jovens aos mais seniores) expressa-se não apenas na sua imediata disponibilidade para, voluntariamente, ir para o terreno, disponibilizando-se a desempenhar tarefas que estão fora da sua zona de conforto ou especialização, demonstrando uma enorme resiliência, mas também ao doar muitos dos seus recursos materiais, adquiridos em condições de financiamento tão competitivo, para estudar outros mecanismos, entender outras doenças ou descobrir outros tratamentos.
Mesmo com parcos recursos, os cientistas prontamente se disponibilizaram a cedê-los, se assim for necessário, para suprir necessidades que deveriam ser asseguradas por outras entidades. Estes são apenas alguns pequenos gestos que atestam bem o perfil magnânimo da comunidade científica portuguesa. É tempo de dar o devido valor aos cientistas, que tão desconsiderados têm sido nestes últimos anos.
Não tenho dúvidas de que vamos superar esta adversidade e sair mais fortes e aptos, enquanto sociedade, para enfrentar outros contratempos que ciclicamente se hão de seguir. A consciência social, o sentimento de solidariedade, a noção da nossa vulnerabilidade, sairão reforçados para que possamos ultrapassar, com sucesso, os desafios que se nos colocam, a cada momento, para não deixar extinguir o planeta... alterações climáticas, desigualdades sociais e económicas, pandemias...
Henrique Girão