Do curso 
de 1959

A prevenção também pode ser poética

Queria ser engenheiro, mas acabou por tornar-se médico e professor. A dois meses de completar 92 anos de vida, Polybio Serra e Silva é presidente do Conselho Científico da Fundação Portuguesa de Cardiologia e da sua Delegação Centro, sendo ainda fundador e presidente honorário da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e presidente da Assembleia Geral da Academia do Bacalhau de Coimbra.

Pelo caminho, integrou a Tuna Académica da Universidade de Coimbra (TAUC), participou em cantares à desgarrada, marcou os doentes e alunos com quem se cruzou, presidiu a instituições e lançou vários livros, nomeadamente na área da Prevenção Vascular. Tem um percurso de vida muito ativo e multifacetado, portanto. Afinal e, como o próprio diz, a explicação está no nome: “Eu sou ‘Poly’ e ‘bio’. Portanto, ou tenho muitas vidas ou, se considerarmos ‘Poly’ enquanto cidade [pólis], sou a vida da cidade!”.

Foi pioneiro ao priorizar a prevenção da Saúde, numa altura em que ainda pouco se falava do assunto. Mas, na verdade, Polybio Serra e Silva foi também e, desde cedo, pioneiro em muitas outras circunstâncias. Como aquela em que, com apenas cinco anos de idade, foi convidado por um professor a frequentar a escola primária, destacando-se pela sua caligrafia irrepreensível. “Passado algum tempo, verifiquei que estava a ser bem considerado na escola, já que o professor agarrava nas minhas cópias e ia mostrá-las aos alunos da quarta classe, quando eu nem da primeira era: isso ficou-me na memória”, indica.

Pouco tempo depois deste episódio, passado em Penacova, sua terra natal, Polybio Serra e Silva mudou-se, com a família, para Coimbra, cidade onde iniciou, efetivamente, os seus estudos. Foi já na adolescência que se sentiu impelido a seguir Engenharia, admitindo que talvez o facto do seu irmão mais velho ter escolhido esse curso tenha tido alguma influência na sua vontade de fazer o mesmo.
Polybio Serra e Silva

Ainda antes de ingressar num curso superior, teve como professora da disciplina de Francês Andrée Crabbé Rocha, mulher de Miguel Torga: “Eu gostava muito dela; lembro-me que nos ensinava Francês a dançar!”, conta. Relembra, inclusive, que mais de 40 anos depois de ter sido seu aluno, se cruzou, um dia, com a sua antiga professora, que o reconheceu e se dirigiu a ele, “pelo nome completo”, conforme faz saber.

Foi pela altura em que ainda era aluno de Andrée Crabbé Rocha que Polybio Serra e Silva entrou para a TAUC, há cerca de 75 anos: “Agora deve estar a pensar como é que isso é possível, tendo eu quase 92 anos de idade, não é?”, pergunta. É que Polybio Serra e Silva entrou para a Tuna ainda antes de ser estudante universitário, conforme esclarece: “No mesmo local onde tinha as aulas de Francês, tinha também aulas de Música, com o Professor Raposo Marques, maestro da Tuna”.


Como sabia que ela gostaria de ter um filho médico, mudei para Medicina.

Um dia, sabendo que Polybio Serra e Silva tocava bandolim, o maestro desafiou-o a integrar a TAUC: “Disse-me que tinha altura e comportamento suficientes e que, por isso, podia perfeitamente integrá-la: e eu lá fui”, declara. Polybio Serra e Silva entrou, assim, para a Tuna, da qual foi, posteriormente, presidente, tendo também sido o fundador e, atualmente, presidente honorário da Associação de Antigos Tunos da Universidade de Coimbra (AATUC).

Chegada a altura de entrar na universidade, Polybio Serra e Silva fez a sua matrícula no curso de Engenharia, conforme a sua vontade inicial, mas um acontecimento inesperado fê-lo mudar de ideias: “Pouco depois da minha matrícula, a minha mãe faleceu. Como sabia que ela gostaria de ter um filho médico, mudei para Medicina”, conta.

Em 1954, já Polybio Serra e Silva era estudante universitário, aconteceu, em Coimbra, aquilo a que os estudantes denominaram de Tomada da Bastilha II, com a qual foi possível a fixação da Associação Académica de Coimbra (AAC) e do Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), onde e como hoje os conhecemos. O nome faz alusão à primeira Tomada da Bastilha, que ocorreu no final de 1920, quando um grupo de estudantes universitários fez da Casa dos Lentes a primeira sede oficial da AAC. Polybio Serra e Silva, que participou na Tomada da Bastilha II, lançou, no final do ano passado, um livro acerca deste acontecimento.  

Dos tempos em que era estudante de Medicina, Polybio Serra e Silva recorda ainda a camaradagem que existia entre os colegas, algo que considera não haver atualmente: “Na minha altura, não havia esta preocupação de se saber mais ou de ter melhor nota que o colega. Havia um espírito de entreajuda diferente, que hoje não vejo”, comenta.

O seu interesse pela Prevenção Vascular começou a evidenciar-se na altura em que escreveu a sua tese de licenciatura, intitulada “O laboratório no diagnóstico precoce da aterosclerose”. Um trabalho, uma vez mais, pioneiro: “Gabo-me disto com um certo gosto, porque a minha tese, feita nos anos 50, destaca a importância de um diagnóstico rápido e precoce da aterosclerose”. Polybio Serra e Silva esclarece que, por ser o princípio do mau funcionamento vascular, a aterosclerose “não é uma doença de velhos, mas uma doença que não nos deixa chegar a velhos”, daí a importância da sua prevenção.

Findo o curso, a que, com os seus colegas, apelidou de “Parto a Sorrir”, aludindo aos dois sentidos que a expressão pode assumir, levou à cena, com o mesmo nome, a Récita dos Quintanistas, reativando uma tradição que, há dez anos, não se realizava. Polybio Serra e Silva iniciou, então, a sua atividade profissional: “Quando acabei de fazer a última cadeira, fui até ao Café Arcádia e, às tantas, recebo um telefonema de um colega, que estava no Rossio ao Sul do Tejo, em Abrantes, a pedir-me que me dirigisse até lá, pois precisava que o substituísse enquanto ia a Lisboa fazer um curso”, conta. Refere-se a esse mês em que lá esteve como “um mês de desgraça”, uma vez que, acabado de se formar e sem qualquer experiência, percebeu que, na verdade, iria ficar sozinho no Serviço, a substituir, afinal, dois colegas.





Dessa aventura profissional, recorda ainda o primeiro e o último casos clínicos com os quais lidou. “Assim que cheguei, fui chamado à pressa para uma urgência, mas nada pude fazer. Tratava-se de um nado-morto e, por isso, só me pude limitar a certificar o óbito”, relata. Já no seu último dia ao serviço, foi chamado para assistir a uma senhora com quase cem anos de idade, que “estava realmente muito mal” e que faleceu pela altura em que Polybio Serra e Silva estava a chegar ao seu quarto. Por isso e, tal como afirma, na sua primeira experiência profissional lidou “com os dois extremos: primeiro com um nado-morto e depois com uma velha morta”.

Polybio Serra e Silva faz questão de explicar o uso da palavra “velha” na sua afirmação, já que, relativamente a esse assunto, tem a sua opinião bem formada: “Não sei se já reparou, mas eu não digo ‘idoso’ nem ‘sénior’. Talvez esteja errado, mas nós não dizemos ‘idoseamento’ ou ‘séniormento’: dizemos ‘envelhecimento’”. Por isso, não vê qualquer má intenção na utilização dessa palavra, entendendo que a “maior praga que podemos desejar a um indivíduo de quem não gostamos é dizer-lhe que oxalá nunca chegue a velho!”.

Depois do mês passado no Rossio ao Sul do Tejo, Polybio Serra e Silva foi convidado para ir trabalhar para a zona das Minas da Panasqueira, também para substituir colegas. Uma experiência que considerou ter corrido melhor, por já estar mais “alicerçado” e confiante no que dizia respeito à prática clínica. Só pode, aliás, ter corrido bem, caso contrário, quando se veio embora, não teriam vindo ter consigo a Coimbra habitantes dessa região, pedindo-lhe que voltasse.

Polybio Serra e Silva optou, no entanto, por continuar em Coimbra, desenvolvendo o seu trabalho no Laboratório de Radioisótopos. Até que, “quando menos esperava e por sugestão do Professor Vaz Serra”, decidiu fazer o seu Doutoramento. Para o efeito, esteve, durante o ano de 1972, em Lyon, a trabalhar na sua tese, a que deu o nome de “Aterogénese exprimental no rato: contribuição para o estudo de um modelo dietético”, dando, mais uma vez, especial enfoque à questão da Prevenção.




Regressado a Portugal, Polybio Serra e Silva ficou a exercer a sua atividade clínica nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), sendo, durante vários anos, diretor clínico dos Serviços de Medicina II. Em 1975, fundou a Consulta Externa de Profilaxia da Aterosclerose e das Dislipidemias, um feito do qual se orgulha: “Esta consulta existe desde essa altura, sem ter parado de funcionar uma única vez”, salienta.

Simultaneamente, foi também docente da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), lecionando, aos alunos de Medicina, a unidade curricular de Endocrinologia e, aos alunos de Medicina Dentária, a unidade curricular de Patologia Médica. Dar aulas era algo que o completava: “Adorava! Ainda hoje, encontro muitas pessoas que dizem ter sido minhas alunas e, quando lhes pergunto se as tratei bem ou mal, fazem-me sempre um elogio brutal”. Admite que era um professor exigente, mas que os seus alunos, estando conscientes desse facto, se preparavam devidamente para as avaliações, nunca tendo, por isso, reprovado nenhum deles.


Eu costumo dizer que sou uma espécie de [António] Aleixo, porque, realmente, adoro a quadra popular.

Fazer chegar a importância da Prevenção a um público mais alargado, que, por norma, não está tão familiarizado com a terminologia médica, foi também uma preocupação por si assumida, que se materializou pelos vários livros que publicou sobre o assunto, ilustrados pelo seu irmão, Fernando Jorge, e escritos em prosa rimada ou em quadra popular. Esse interesse pela escrita e, de certa forma, pelas rimas, vem já dos tempos de estudante universitário. “Eu costumo dizer que sou uma espécie de [António] Aleixo, porque, realmente, adoro a quadra popular: enquanto académico, cantei muito à desgarrada e, habitualmente, vencia sempre!”, confessa. Com efeito, Polybio Serra e Silva dedicava-se com afinco às desgarradas, contando que os quatro versos das suas quadras tinham sempre sete sílabas e que “o primeiro rimava com o terceiro e o segundo com o quarto”. 

Polybio Serra e Silva

Em 1991, o primeiro livro que publicou surgiu de um compromisso assumido com o Diário de Coimbra, tal como conta: “Prometi-lhes que, durante três meses, escreveria, semanalmente, uma crónica sobre Medicina, que resolvi fazer, precisamente, sobre Prevenção Vascular”. Desse modo, Polybio Serra e Silva escreveu 12 crónicas, reunindo-as posteriormente “para enviar ao Professor Fernando de Pádua”, que o aconselhou a publicá-las sob a forma de um livro, a que deu o título de “Prevenção Vascular”.

Depois desse livro, escreveu outro: “Era uma vez um coração”, datado de 1993 e que foi, entretanto, adaptado para teatro, é o primeiro livro infantil, escrito em português e em verso, que explica às crianças “como fazer a prevenção dos fatores de risco cardiovascular, numa linguagem simples, mas cientificamente correta”. A estes dois livros seguiram-se outros, como “Aprender a não ser velho”, “A um Amigo… Digo”, “Decálogo da Prevenção Vascular”, “Um Poético Cafezinho” ou “Vossemecê Senhor Vinho”. O seu mais recente livro é “Gadus Morhua – o fiel amigo”: como o título indica, falamos de um livro sobre o bacalhau, que Polybio Serra e Silva escreveu e imprimiu para oferecer à Academia do Bacalhau de Coimbra, da qual, conforme referido, é presidente da Assembleia Geral.

Está jubilado desde o dia 20 de maio de 1998: “Fui posto a andar, no dia em que fiz 70 anos. Ainda perguntei, no Serviço, se não me queriam lá, e avisei que podia continuar a trabalhar pro bono, mas, não consegui!”, graceja. Na altura da sua jubilação, Polybio Serra e Silva liderou ainda, numa parceria com 25 médicos especialistas em várias áreas e a Associação Dentária Portuguesa, uma formação com uma carga horária de 1200 horas, que possibilitou aos odontologistas adquirirem a carteira profissional para o exercício da Medicina Dentária.

Atualmente, continua a participar em diversos congressos e conferências, “sempre em verso, mas com rigor científico”, acompanhado da sua mulher, Aurora, a quem se refere como sendo os seus “braço direito, esquerdo, perna direita e esquerda”, em tom de brincadeira: “É espetacular esta mulher. Aliás, no início das minhas conferências, gabo-a sempre, e ela fica zangada comigo!”, conta.

Algumas das suas comunicações em conferências são realizadas no âmbito de diversos eventos promovidos, nomeadamente, pela Fundação Portuguesa de Cardiologia ou pela Academia do Bacalhau de Coimbra, instituição de que é “Compadre Prestígio” e que faz por dinamizar. Foi o que aconteceu, precisamente, no dia em que esta conversa decorreu: “Hoje, vou lá fazer uma pequena conferência acerca da sexualidade na terceira idade, porque acho que a Academia não deve ser só uma reunião gastronómica”.


Polybio Serra e Silva

Polybio Serra e Silva já recebeu diversas distinções, como a Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos e o Prémio à Excelência da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra (AAEC), em 2014, o Prémio Nunes Correa Verdades de Faria, da Santa Casa da Misericórdia, em 2017, a de Melvin Jones do Lions Clube de Coimbra, ou a de Herói do Coração, em 2019. Em 2018, recebeu ainda o título de “Tuno ad aeternum”, quando a TAUC celebrou os seus 130 anos de atividade, com um espetáculo no Seminário Maior de Coimbra.

Mas há uma distinção que se orgulha particularmente de ter recebido: a Medalha de Serviços Distintos – Grau Ouro, em 2013, atribuída pelo Ministério da Saúde. “Orgulho-me dessas distinções, mas não as exibo, nem nada. Eu sou anti-Facebook, mas a minha mulher é meia fã e, como sei que seleciona bem os nossos amigos, o que por vezes peço é que lhes diga que pedi para contar que recebi alguma coisa”, refere.



Para mim, o mais importante na Medicina e na prática clínica é a relação médico-doente.

Preocupado com a Prevenção e com a forma como os conteúdos da área da Saúde são comunicados, Polybio Serra e Silva é também consciente da importância de uma comunicação entre médico e doente próxima e eficaz. Considera que, atualmente, as pessoas “vivem à conta de uma coisa chamada Google”, à qual vão buscar informações, muitas vezes erradas. “Para mim, o mais importante na Medicina e na prática clínica é a relação médico-doente: está à frente de tudo!”, declara. Polybio Serra e Silva, que, até há pouco tempo, manteve atividade no seu consultório, conta mesmo que sempre fez consultas com muito tempo de duração, nas quais privilegiava um contacto próximo com quem o consultava, chegando, por diversas vezes, a acabar de atender doentes às seis da manhã, que ele próprio levava até casa quando os mesmos não possuíam transporte para o efeito.

Polybio Serra e Silva

Sabendo do seu talento para a escrita e para as rimas, é inevitável terminar a conversa perguntando a Polybio Serra e Silva o que diria acerca do seu percurso, caso tivesse de o fazer recorrendo a uma quadra. A resposta surge prontamente: 


“Almeida [varredor] da Prevenção,

Há seis décadas sem férias,

Com a vassoura na mão,

Cá vou varrendo as artérias”.

Está tudo dito.

por Luísa Carvalho Carreira
Fotografias gentilmente cedidas por Polybio Serra e Silva