Do curso 
de 1959

As recordações surgem naturalmente

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“Nasci a 4 de novembro de 1931, o que significa que já fiz 88 anos. O que quer dizer, portanto, que estou velho e que a minha memória já não é o que era!” A dedução introdutória é feita por Adelino Marques, que, enquanto esclarece que o intuito da conversa não é um relato circunstancial, afirma ter uma “ínfima” memória de acontecimentos da sua vida. Veremos, ao longo das próximas linhas, se as suas recordações serão assim tão escassas.

Natural de uma aldeia da Beira Serra, pertencente ao concelho de Arganil, Adelino Marques veio viver para Coimbra com pouco mais de um ano de idade. Por isso, declara, com prontidão, que a sua ligação à cidade é visceral. “Passei a minha infância a vadiar pela cidade, a antiga, que bem conheci. Coimbra cresceu, já não é o que era. Antes, era como uma vila: lembro-me de ouvir dizer, quando era miúdo, que a cidade tinha 47 mil habitantes. Agora, terá mais de 110 mil!”, refere.
Os seus pais decidiram mudar-se para a cidade de Coimbra no intuito de proporcionarem uma melhor formação aos três filhos. “O meu pai era um comerciante muito modesto. Não enriqueceu, trabalhou para formar os filhos”, esclarece, enaltecendo “a lição do valor do trabalho e o exemplo de honestidade” que recebeu dos seus pais. Embora se tenha mudado com tão tenra idade, tem recordações da sua aldeia, que continuou a visitar, numa altura em que não havia eletricidade nem água corrente: “Fazia ideia daquilo que era a vida numa aldeia da Beira Serra? Uma vida de sacrifício… Mas as pessoas entreajudavam-se. Tudo isto é uma lição de vida”.


Um dia, fartei-me da situação e abandonei a aula.

Adelino Marques começou por frequentar a instrução primária na Escola de Santa Cruz, mas não foi lá que a concluiu, conforme faz saber: “Tive lá uma professora… Coitado do Adelino, muita pancada apanhou ele daquela senhora professora!”. E conta um episódio caricato, sobretudo se pensarmos que, à data, tinha apenas sete anos: “Um dia, fartei-me da situação e abandonei a aula”. Quando chegou a casa, informou que vinha da escola e que não queria voltar, mas a mãe levou-o, novamente, para junto da professora: “tornei a voltar para casa e ao regressar à escola lá levei mais uma sova, claro”.

Preocupados, os seus pais conversaram um com o outro acerca da situação. “Eu não ouvi, mas sei que falaram e decidiram mudar-me de escola, para a de S. Bartolomeu. Para mim, foi uma sorte: se sou alguém hoje, também o devo ao meu professor da primária”, reconhece. Adelino Marques conta que, aos dez anos, só não fez o exame da quarta classe com distinção porque confundiu uma conjunção integrante com um pronome relativo: “ficou com um desgosto, o professor!”.

Mais tarde, frequentou o Liceu D. João III [Escola Secundária José Falcão], mas, antes de entrar para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), esteve cerca de três anos doente e, por isso, obrigado a ficar em casa. “Nessa altura, li, li, li. Eu sou um leitor absolutamente compulsivo!”, diz. Conta que, com apenas 14 anos, já tinha lido quase toda a coleção dos livros de Júlio Verne: “Aqueles livros eram ciência!”. Diz inclusive, por graça, que devido ao facto desses livros serem das primeiras edições traduzidas da obra de Verne pela Casa Editora David Corazzi, era um aluno irrepreensível na disciplina de Francês: “Não sei se alguma vez viu essas edições… As palavras ainda se escreviam com ‘ph’ e tudo, de maneira que nos três anos de Francês do Liceu, raramente cometia erros ortográficos”.
Adelino Marques

Dos tempos em que era criança, lembra-se ainda de jogar à bola na Avenida Fernão de Magalhães, junto à escola, e de andar pela cidade com o seu irmão, dois anos mais novo: “Uma vez, em dia de cheia, íamos morrendo afogados no Mondego… A minha mãe nunca soube!”, confidencia.

O seu irmão mais novo seguiu a carreira militar. O mais velho, que “faria agora cem anos, se fosse vivo”, formou-se em Medicina. Adelino Marques conta que o irmão exerceu a sua atividade clínica na Beira Serra, onde, à época, nos anos 40, as visitas médicas eram feitas a cavalo: “O meu irmão experimentou aquela Medicina descrita pelo Fernando Namora e, até certo ponto, também pelo [Miguel] Torga, uma Medicina de sacrifício, de ajudar os mais carenciados, muitas vezes não cobrando dinheiro pelas consultas”. Em 1948, o seu irmão mais velho, que era também seu padrinho de batismo, viria a morrer de tuberculose. 

Adelino Marques recorda-o com carinho: “Eu tinha pelo meu irmão, do qual era 11 anos mais novo, uma estima enorme. Ele era um homem excelente, com uma formação moral espantosa, era um homem de respeito”. Relembra, igualmente, o quão duro foi, para a sua mãe, perder um dos filhos: “Foi um desgosto imenso… Ele morreu-lhe nos braços, nos quartos particulares do velho hospital. A sua vida ficou marcada por esse acontecimento e pelo temor de que eu e o meu irmão viéssemos a padecer do mesmo”.  

Confessa que foi por influência do seu irmão mais velho que escolheu seguir Medicina, formando-se, em 1959, com 19 valores. E explica que, de acordo com a antiga praxe, na véspera do ato de formatura, o aluno ia pedir benevolência ao seu presidente. “Eu também a fui pedir, ao Professor Lúcio de Almeida”, conforme relata: “Dirigi-me até à sua casa e estivemos a conversar: ele era um conversador! Achou graça à minha diligência, que há muito tempo não era observada. No fim, ofereceu-me um cálice de vinho do Porto”.


Adelino Marques

Depois do curso e conforme refere, dedicou-se à carreira universitária e à prática clínica. Nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), Adelino Marques era assistente de Propedêutica Médica e Semiótica Laboratorial, “sob a direção do Professor Bruno da Costa”, mas a Nefrologia, que não era individualizada no currículo académico da FMUC – consistia, apenas, num “modesto capítulo da Medicina Interna” – era já matéria de marcado desenvolvimento, que interessava vivamente Adelino Marques. Decidiu, por isso, falar com o seu diretor e com Augusto Vaz Serra, à data diretor da FMUC, manifestando-lhes o interesse na Nefrologia e deles obtendo o favorável parecer e os necessários apoios institucionais. 


Como costumo dizer, fizemos turismo revolucionário!

Assim, de 1967 a 1969, com vista ao doutoramento que viria a terminar em 1970, também com 19 valores, Adelino Marques foi para Paris como Investigador da Associação Claude-Bernard, com uma bolsa da Assistência Pública de Paris e, mais tarde, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. A mulher e o filho, na altura com apenas quatro anos, foram consigo. “Como costumo dizer, fizemos turismo revolucionário!”, afirma, divertido, aludindo ao maio de 68. Assistiu, por isso, a múltiplas reuniões estudantis e à agitação que tomou conta da cidade francesa: “Fomos ao Bairro Latino, ocupado com barricadas, cheirámos o gás lacrimogéneo, vimos carros espatifados; havia muita anarquia, muita desordem”. Por isso, diz, em tom de brincadeira, que, aquando da crise académica de 1969, pensava: “Isto, para mim, é canja!”.

 

Enquanto relata a sua vivência do maio de 68, lembra-se de um facto curioso: “Até aprendi lá como se faz um cocktail molotov. Tinha a receita num caderninho e perdi-o, veja só a preciosidade! Mas ainda sei, de memória, como se faz. Quer saber?”, pergunta, com bom humor.


Trouxe uma formação de Nefrologia invejável para a época.

Quando regressou da capital francesa, Adelino Marques trazia consigo o diploma de Estudos Especializados de Nefrologia da Faculdade de Medicina de Paris: “Trouxe uma formação de Nefrologia invejável para a época”, afirma. Por essa razão, já como chefe de serviço de Nefrologia, teve a seu cargo a organização do Serviço de Nefrologia dos HUC, do qual foi diretor entre 1976 – data da criação do Serviço – até 2001. De 1990 a 1997, foi ainda presidente da Comissão de Ética para a Saúde dos HUC.  


Na FMUC, foi regente das unidades curriculares de Climatologia e Hidrologia, de 1973 a 1985, de Propedêutica Médica e Semiótica Laboratorial, de 1974 a 1975, e de Ética e Deontologia Médicas e de Nefrologia, de 1975 até à jubilação. Entre 1980 e 1993, dirigiu a revista Coimbra Médica – Revista de Medicina e Cirurgia da FMUC.  


Em 1988, foi indicado pelo Ministério da Saúde como membro do Comité Restrito de Peritos da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa para os estudos das atitudes dos profissionais da saúde no tratamento dos doentes terminais: “É o que está agora na moda quando se fala em cuidados paliativos. Como membro deste Comité, redigi um relatório, que apresentei ao Ministério da Saúde; ainda por lá deve estar nalguma gaveta!”, desabafa. Adelino Marques desempenhou ainda outras missões, especialmente na Ordem dos Médicos, e presidiu a várias sociedades médicas. 


Jubilou-se em 2001, mas não para ficar parado: “Desde há muitos anos, associei-me a uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), basicamente religiosa, que é a Ordem Terceira de São Francisco”, com as suas obras sociais – Lar de Idosos e Casa Abrigo Padre Américo – “tendo já presidido à sua direção”, refere. De há dez anos a esta parte, o arquivo da Ordem Terceira de São Francisco tem sido “objeto do dedicado trabalho técnico e investigativo da sua arquivista”, Ana Margarida Dias da Silva, do Arquivo da Universidade de Coimbra. Adelino Marques confessa manter um constante interesse por esse tão importante sector da instituição, com as “oportunidades de proveitosa abordagem da vasta documentação que contém a história da Ordem”, fundada em 1659. 






Casados há quase 60 anos, Adelino Marques e a sua mulher têm dois filhos e três netas: “Elas têm 18, 16 e 14 anos e já são todas mais altas que eu”, comenta. Reconhece que conjugar a vida profissional com a pessoal nem sempre foi fácil, e considera “inestimável o importantíssimo apoio” da sua mulher nessa dinâmica: professora do Ensino Secundário, chegou, inclusive, a interromper a sua carreira para acompanhar Adelino Marques, durante os dois anos em que esteve em Paris.


Para Adelino Marques, a grande qualidade do seu curso de Medicina - o da “decantada Balada de Despedida do Curso Médico de 1952-1958” - é o companheirismo, a camaradagem, “com tudo o que isso significa”. E significa tanto que, desde o oitavo ano de formatura, todos os seus 127 alunos decidiram realizar um encontro anual, prática que até hoje se mantém. Atualmente, o encontro acontece sempre em Coimbra e, para além do convívio, há também espaço para a “saudade dos muitos que, entretanto, partiram”. Mas, em anos anteriores, o grupo fazia questão de marcar encontro um pouco por todo o País. Esse espírito de corpo manifestou-se na “homenagem que o curso prestou ao seu condiscípulo Alexandre Linhares Furtado, em 27 de maio de 2018”, conforme indica. 

Adelino Marques

Homenagem do curso a Alexandre Linhares Furtado.
Da esquerda para a direita: Ramiro de Castro Almeida, Alexandre Linhares Furtado, Adelino Marques e Henrique Vilaça Ramos


Hoje, refere que, quando entra nos HUC, “felizmente ainda não como doente”, encontra sempre alguém que o saúda de modo cordial: “Sou acolhido por antigos alunos, médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar, que até vêm ao beijinho! E todos com um sorriso”.


Adelino Marques orgulha-se das suas realizações profissionais. E tem motivos para isso: “Eu olho para trás e gosto de falar na obra feita. Montei um Serviço [de Nefrologia] e pu-lo a funcionar, durante todos aqueles anos. Hoje, é um dos melhores serviços do País, com uma bela equipa de médicos especialistas, que ainda inclui vários dos muitos que formei; dela me orgulho”, admite. No Natal, é sempre convidado para ir “ao jantarinho da praxe”, organizado pelo Serviço: “E não me canso de os ver lá a todos!”, diz, embevecido.  


O percurso de vida de Adelino Marques é feito destes episódios, mas também de muitos outros, que ficam por contar, pois dariam para outras tantas linhas escritas. Quanto à sua dedução inicial? Decerto, não nos levará a mal por considerarmos que se equivocou quanto à mesma. Às vezes, lembramo-nos mesmo de muito mais do que aquilo que julgamos.  

por Luísa Carvalho Carreira
Fotografias gentilmente cedidas por Adelino Marques