Dos tempos em que era criança, lembra-se ainda de jogar à bola na Avenida Fernão de Magalhães, junto à escola, e de andar pela cidade com o seu irmão, dois anos mais novo: “Uma vez, em dia de cheia, íamos morrendo afogados no Mondego… A minha mãe nunca soube!”, confidencia.
O seu irmão mais novo seguiu a carreira militar. O mais velho, que “faria agora cem anos, se fosse vivo”, formou-se em Medicina. Adelino Marques conta que o irmão exerceu a sua atividade clínica na Beira Serra, onde, à época, nos anos 40, as visitas médicas eram feitas a cavalo: “O meu irmão experimentou aquela Medicina descrita pelo Fernando Namora e, até certo ponto, também pelo [Miguel] Torga, uma Medicina de sacrifício, de ajudar os mais carenciados, muitas vezes não cobrando dinheiro pelas consultas”. Em 1948, o seu irmão mais velho, que era também seu padrinho de batismo, viria a morrer de tuberculose.
Adelino Marques recorda-o com carinho: “Eu tinha pelo meu irmão, do qual era 11 anos mais novo, uma estima enorme. Ele era um homem excelente, com uma formação moral espantosa, era um homem de respeito”. Relembra, igualmente, o quão duro foi, para a sua mãe, perder um dos filhos: “Foi um desgosto imenso… Ele morreu-lhe nos braços, nos quartos particulares do velho hospital. A sua vida ficou marcada por esse acontecimento e pelo temor de que eu e o meu irmão viéssemos a padecer do mesmo”.
Confessa que foi por influência do seu irmão mais velho que escolheu seguir Medicina, formando-se, em 1959, com 19 valores. E explica que, de acordo com a antiga praxe, na véspera do ato de formatura, o aluno ia pedir benevolência ao seu presidente. “Eu também a fui pedir, ao Professor Lúcio de Almeida”, conforme relata: “Dirigi-me até à sua casa e estivemos a conversar: ele era um conversador! Achou graça à minha diligência, que há muito tempo não era observada. No fim, ofereceu-me um cálice de vinho do Porto”.
Depois do curso e conforme refere, dedicou-se à carreira universitária e à prática clínica. Nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), Adelino Marques era assistente de Propedêutica Médica e Semiótica Laboratorial, “sob a direção do Professor Bruno da Costa”, mas a Nefrologia, que não era individualizada no currículo académico da FMUC – consistia, apenas, num “modesto capítulo da Medicina Interna” – era já matéria de marcado desenvolvimento, que interessava vivamente Adelino Marques. Decidiu, por isso, falar com o seu diretor e com Augusto Vaz Serra, à data diretor da FMUC, manifestando-lhes o interesse na Nefrologia e deles obtendo o favorável parecer e os necessários apoios institucionais.
Assim, de 1967 a 1969, com vista ao doutoramento que viria a terminar em 1970, também com 19 valores, Adelino Marques foi para Paris como Investigador da Associação Claude-Bernard, com uma bolsa da Assistência Pública de Paris e, mais tarde, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. A mulher e o filho, na altura com apenas quatro anos, foram consigo. “Como costumo dizer, fizemos turismo revolucionário!”, afirma, divertido, aludindo ao maio de 68. Assistiu, por isso, a múltiplas reuniões estudantis e à agitação que tomou conta da cidade francesa: “Fomos ao Bairro Latino, ocupado com barricadas, cheirámos o gás lacrimogéneo, vimos carros espatifados; havia muita anarquia, muita desordem”. Por isso, diz, em tom de brincadeira, que, aquando da crise académica de 1969, pensava: “Isto, para mim, é canja!”.
Enquanto relata a sua vivência do maio de 68, lembra-se de um facto curioso: “Até aprendi lá como se faz um cocktail molotov. Tinha a receita num caderninho e perdi-o, veja só a preciosidade! Mas ainda sei, de memória, como se faz. Quer saber?”, pergunta, com bom humor.
Quando regressou da capital francesa, Adelino Marques trazia consigo o diploma de Estudos Especializados de Nefrologia da Faculdade de Medicina de Paris: “Trouxe uma formação de Nefrologia invejável para a época”, afirma. Por essa razão, já como chefe de serviço de Nefrologia, teve a seu cargo a organização do Serviço de Nefrologia dos HUC, do qual foi diretor entre 1976 – data da criação do Serviço – até 2001. De 1990 a 1997, foi ainda presidente da Comissão de Ética para a Saúde dos HUC.
Na FMUC, foi regente das unidades curriculares de Climatologia e Hidrologia, de 1973 a 1985, de Propedêutica Médica e Semiótica Laboratorial, de 1974 a 1975, e de Ética e Deontologia Médicas e de Nefrologia, de 1975 até à jubilação. Entre 1980 e 1993, dirigiu a revista Coimbra Médica – Revista de Medicina e Cirurgia da FMUC.
Em 1988, foi indicado pelo Ministério da Saúde como membro do Comité Restrito de Peritos da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa para os estudos das atitudes dos profissionais da saúde no tratamento dos doentes terminais: “É o que está agora na moda quando se fala em cuidados paliativos. Como membro deste Comité, redigi um relatório, que apresentei ao Ministério da Saúde; ainda por lá deve estar nalguma gaveta!”, desabafa. Adelino Marques desempenhou ainda outras missões, especialmente na Ordem dos Médicos, e presidiu a várias sociedades médicas.
Jubilou-se em 2001, mas não para ficar parado: “Desde há muitos anos, associei-me a uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), basicamente religiosa, que é a Ordem Terceira de São Francisco”, com as suas obras sociais – Lar de Idosos e Casa Abrigo Padre Américo – “tendo já presidido à sua direção”, refere. De há dez anos a esta parte, o arquivo da Ordem Terceira de São Francisco tem sido “objeto do dedicado trabalho técnico e investigativo da sua arquivista”, Ana Margarida Dias da Silva, do Arquivo da Universidade de Coimbra. Adelino Marques confessa manter um constante interesse por esse tão importante sector da instituição, com as “oportunidades de proveitosa abordagem da vasta documentação que contém a história da Ordem”, fundada em 1659.
Casados há quase 60 anos, Adelino Marques e a sua mulher têm dois filhos e três netas: “Elas têm 18, 16 e 14 anos e já são todas mais altas que eu”, comenta. Reconhece que conjugar a vida profissional com a pessoal nem sempre foi fácil, e considera “inestimável o importantíssimo apoio” da sua mulher nessa dinâmica: professora do Ensino Secundário, chegou, inclusive, a interromper a sua carreira para acompanhar Adelino Marques, durante os dois anos em que esteve em Paris.
Para Adelino Marques, a grande qualidade do seu curso de Medicina - o da “decantada Balada de Despedida do Curso Médico de 1952-1958” - é o companheirismo, a camaradagem, “com tudo o que isso significa”. E significa tanto que, desde o oitavo ano de formatura, todos os seus 127 alunos decidiram realizar um encontro anual, prática que até hoje se mantém. Atualmente, o encontro acontece sempre em Coimbra e, para além do convívio, há também espaço para a “saudade dos muitos que, entretanto, partiram”. Mas, em anos anteriores, o grupo fazia questão de marcar encontro um pouco por todo o País. Esse espírito de corpo manifestou-se na “homenagem que o curso prestou ao seu condiscípulo Alexandre Linhares Furtado, em 27 de maio de 2018”, conforme indica.
Homenagem do curso a Alexandre Linhares Furtado.
Da esquerda para a direita: Ramiro de Castro Almeida, Alexandre Linhares Furtado, Adelino Marques e Henrique Vilaça Ramos
Hoje, refere que, quando entra nos HUC, “felizmente ainda não como doente”, encontra sempre alguém que o saúda de modo cordial: “Sou acolhido por antigos alunos, médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar, que até vêm ao beijinho! E todos com um sorriso”.
Adelino Marques orgulha-se das suas realizações profissionais. E tem motivos para isso: “Eu olho para trás e gosto de falar na obra feita. Montei um Serviço [de Nefrologia] e pu-lo a funcionar, durante todos aqueles anos. Hoje, é um dos melhores serviços do País, com uma bela equipa de médicos especialistas, que ainda inclui vários dos muitos que formei; dela me orgulho”, admite. No Natal, é sempre convidado para ir “ao jantarinho da praxe”, organizado pelo Serviço: “E não me canso de os ver lá a todos!”, diz, embevecido.
O percurso de vida de Adelino Marques é feito destes episódios, mas também de muitos outros, que ficam por contar, pois dariam para outras tantas linhas escritas. Quanto à sua dedução inicial? Decerto, não nos levará a mal por considerarmos que se equivocou quanto à mesma. Às vezes, lembramo-nos mesmo de muito mais do que aquilo que julgamos.