Do curso 
de 1970

Do Penedo da Saudade para o Mundo

Na sua Última Lição enquanto Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), proferida a 29 de setembro de 2016, dia em que completou 70 anos de vida, fez referência a uma frase de George Orwell, para aludir aos paralelismos entre o seu percurso profissional e académico e o do seu pai: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Na verdade, António Meliço Silvestre, com todas as semelhanças partilhadas com o pai, não deixa de ser igual a si próprio: conversador, opinativo e bem-humorado.

Os seus pais eram ambos da Guarda, mas António Meliço Silvestre nasceu já em Coimbra, onde o seu pai, formado em Matemática e em Medicina, era docente na FMUC. É, por isso, “um homem do Penedo da Saudade”, conforme afirma, por ter nascido e vivido sempre perto daquele local.

Para si, os anos de estudante universitário foram, indiscutivelmente, “bons tempos” e considera o facto de ser de Coimbra uma vantagem face aos alunos que vinham de fora, numa “circunstância totalmente diferente”, na qual não tinham a estrutura familiar e a estabilidade de que beneficiou enquanto estudante universitário na cidade onde nasceu. Relembra, inclusive, que a sua mãe mandou fazer um bar, numa antiga garagem, para que António Meliço Silvestre pudesse conviver com os seus amigos e colegas: “Tinha um barzinho aqui ao lado, para a gente se distrair e não chatear ninguém lá em casa”.
António Meliço Silvestre

Em 1970 e com o curso de Medicina terminado, António Meliço Silvestre inicia a sua atividade profissional em Coimbra. A partir dessa altura e conforme conta, fez “uma passagem por vários Serviços, essencialmente pela Cardiologia”.

Cinco anos depois, em 1975, parte rumo a Londres, onde permanece, por alguns meses, para a realização de estágios na Royal Postgraduate Medical School, localizada, à data, no Hospital Hammersmith. Para António Meliço Silvestre, esta foi uma experiência enriquecedora, pelos “professores fantásticos” e “estupendos” com quem teve oportunidade de privar: “Um deles era assim mais baixinho do que eu, por isso, ao pé dele, sentia-me um fortalhaço. Ele falava um Inglês de Oxford que era uma coisa fabulosa… Um tipo ia ouvir aquilo com prazer, parecia música!”, conta, com boa disposição.

Decorria o ano de 1978 quando António Meliço Silvestre foi para Paris, onde permaneceu por dois anos, para fazer o Doutoramento, no Hospital Henri Mondor, que, “na altura, era o hospital mais notável e diferenciado”, conforme explica. Ao recordar esta época, as boas lembranças fazem-no, de modo descontraído, afirmar: “Passei lá dois anos porreiros da vida”. Tal não significa que a experiência não tenha sido trabalhosa: “Eu falava bem francês; quanto a isso não tive dificuldades. Mas, realmente, aquilo era um bocadinho puxado”, confessa.


Só que eu, um dia, convidei o Professor para um congresso aqui e ele mudou de vida, não é?

Em Paris, as suas manhãs começavam cedo: “Às 8h30, o Professor, meu patrono, já estava a vestir a bata. Por isso, a essa hora também já tinha que lá estar”, refere. No andar de baixo do hospital, António Meliço Silvestre dedicava-se ao trabalho de laboratório e, no oitavo piso, à prática clínica, no Serviço de Medicina Interna e Aterosclerose. “Lá, fui sempre bem tratado, mas apercebia-me assim de um certo querer impor-se da ideia do pobrezito que veio lá das berças! Só que eu, um dia, convidei o Professor para um congresso aqui e ele mudou de vida, não é? Não estávamos assim tão pequeninos como ele julgava! A partir daí, passei a ser o ‘Monsieur Silvestre’. Muito bem”, remata, divertido. 

É também ao descrever as suas manhãs no Hospital Henri Mondor que António Meliço Silvestre se lembra de um episódio engraçado. “Quando chegava de manhã, ia lá acima [oitavo piso do hospital], na altura em que o Professor estava a começar uma visita rápida ao Serviço. E eu entrava no elevador, no rés-do-chão, que ia parando conforme subia, não é? Primeiro, segundo, terceiro andar… Até ao oitavo, demorava um bocado”, começa, assim, por introduzir a história. “Era o período mais agradável que eu tinha lá no hospital”, continua. “Sabe porquê? Eu ia com as senhoras que faziam a limpeza do hospital e que eram portuguesas, mas que pensavam que eu era francês e, por isso, iam tranquilamente a conversar em português. Eu chegava lá acima com o conhecimento de tudo o que se passava nas redondezas! Às vezes, convidava até os amigos, mas dizia-lhes antes «não se riam, estragam-me o pagode!»”, graceja. 


Sabe que as coisas acontecem quando menos contamos.

Passados os dois anos em Paris, António Meliço Silvestre regressa a Portugal, onde se dedica à Medicina Interna e à Cardiologia. Até que, em 1985, assume a direção do Serviço de Doenças Infeciosas dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), numa altura em que foram diagnosticados na região Centro os primeiros casos de infeção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH).

Este acontecimento viria, assim, a ter um forte impacto na sua carreira. “Sabe que as coisas acontecem quando menos contamos”, afirma, “e eu lembro-me perfeitamente de estar lá nas minhas Medicinas Internas e Cardiologias, quando recebo um telefonema da FMUC. Naquela altura, este tipo de decisões dependia muito da Faculdade. Assumi a direção do Serviço de Doenças Infeciosas no dia seguinte”.  

O percurso profissional de António Meliço Silvestre foi, aliás, pautado pelo desempenho de vários cargos de relevo, a par da prática clínica, da docência, da investigação e da produção científica. Do seu vasto currículo constam, entre outras funções, a de Presidente do Conselho Científico e do Gabinete de Educação Médica da FMUC, tendo sido também, na Faculdade, o primeiro Presidente Eleito da Assembleia durante os seis primeiros anos desta estrutura. Foi também Presidente do Conselho de Administração dos HUC e geriu, através desta unidade hospitalar, o Hospital Agostinho Neto, em São Tomé e Príncipe. Desempenhou, igualmente, os cargos de Presidente da Comissão Nacional da Luta Contra a Sida, Administrador da Fundação Bissaya Barreto e Curador da Fundação ‘A Comunidade Contra a Sida’.  

Não é, por isso, de admirar que, em 2010, tenha sido agraciado com o grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito pelo então Presidente da República Cavaco Silva, nem que, em 2015, o Ministério da Saúde lhe tenha atribuído a Medalha de Serviços Distintos Grau Ouro. António Meliço Silvestre fala com franqueza acerca da importância que têm, para si, estas distinções. “Não ‘puxo’ por elas, mas, se aparecerem, sabem bem. Quem disser que não, está armado aos cucos!”, brinca.  

António Meliço Silvestre

Dos tempos em que exercia a sua atividade profissional e académica, António Meliço Silvestre recorda o particular interesse que tinha pelos congressos a que assistia, bem como pelas viagens, muitas vezes necessárias, para participar nos mesmos: “Era engraçado, encontrávamos pessoas no estrangeiro que acabávamos por não ver tanto cá e aprendi muito com os congressos”. A este propósito, conta um episódio peculiar: “Um dia, deu-me uma maluqueira, de ir ver como é isso do jet lag, dos aviões. Havia um congresso em Singapura, outro na Tailândia e um aqui, em Coimbra”. E, se era para perceber o que era o jet lag, António Meliço Silvestre não fez por menos: estando no continente asiático para assistir a um dos congressos, voltou a Coimbra, para outro congresso e, no dia seguinte, rumou novamente ao continente asiático, para o último dos três congressos que tinha na agenda. “Na altura, pensei que ia dar cabo do jet lag e nunca mais ia ter medo aquilo… Foi a maior chumbada que apanhei! Quando lá cheguei, aquilo é que era um jet lag! Que coisa brutal”, confessa.

Com efeito, o seu percurso profissional permitiu-lhe o contacto com realidades longínquas e o exercício de funções fora de terras lusas. Exemplo disso é a referida gestão do Hospital Agostinho Neto, em São Tomé e Príncipe, como comenta: “Os HUC fizeram um protocolo com o Hospital Agostinho Neto, na Ilha de São Tomé, do qual fui diretor. Tínhamos também um hospital de campanha no meio do mato e, na Ilha do Príncipe, uma casita de apoio médico. Aquele país é lindíssimo. A única coisa má que tinha era a chamada cobra preta”, cujo veneno “podia matar em pouco tempo, mas só a vi uma vez, a cruzar uma estrada”, relata.  

Recorda-se de ter tido malária, quando esteve em São Tomé: “ia morrendo”, admite. Mas esse desagradável episódio é rapidamente relatado, para dar lugar à lembrança de outro, ou não fosse percetível o gosto de António Meliço Silvestre em viajar e conhecer o mundo: “Um dia, fomos a São Tomé e Príncipe, para recebermos um prémio que o Embaixador nos dava por tratarmos a população local. E lembrei-me de irmos ao Gabão. Fomos de avião, com um Tenente da Força Aérea Portuguesa. As maluqueiras que fazíamos…”. António Meliço Silvestre conta, inclusive, que passou para o filho o gosto de partir rumo ao desconhecido: “O meu filho já viveu em Xangai e nos Estados Unidos. Seguiu o exemplo do pai”. 


Quando isso acontecia, era uma satisfação, aquele prazer de ver alguém andar por cá mais uns tempos.

Quando questionado acerca de uma possível influência familiar na escolha do curso de Medicina, que ditou e marcou, natural e invariavelmente, a sua vida, António Meliço Silvestre diz não saber ao certo se a mesma existiu, mas admite nunca ter colocado a “hipótese de ser outra coisa” que não médico. “Não sei se fiz bem, se fiz mal. Eu gosto de Medicina, fico satisfeito por ter feito o curso, mas é um bocado cansativo e, às vezes, não interpretam muito bem o esforço que fazemos!”. Esse esforço que refere fá-lo lembrar-se da Medicina Intensiva: “Foi o que gostei mais, pelava-me por ter uma urgência de banco!”. E justifica-se: “Parece sádico, não é? Mas não, é aquela coisa de ‘safar’ o doente. Quando isso acontecia, era uma satisfação, aquele prazer de ver alguém andar por cá mais uns tempos”.

Até porque, para António Meliço Silvestre, “esta coisa de uma pessoa ir-se embora” é algo que, como é compreensível, o incomoda, tal como afirma quando se refere aos amigos que perdeu nos últimos tempos e com os quais privou ao longo de anos: “Sabe que somos preparados para tudo, mas é um bocado chato! Ainda há pouco tempo, morreu o Chieira [Celso Chieira, médico], que fazia parte de uma tertúlia que tínhamos”. “Agora, o Carlos Amaral Dias também já se foi embora. Ele era engraçado. Foi meu colega na José Falcão [escola secundária]”, refere, com lamento.

Já quando instado a pronunciar-se acerca da relação entre a FMUC e o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), pela ampla perspetiva e conhecimento que tem de ambas as estruturas, António Meliço Silvestre considera que, “se houver uma situação em que as duas instituições possam estar fundidas, melhor”. Na sua opinião, é fundamental “personalizar a docência”: “É preciso haver mais interação, em termos de pôr os alunos a falarem daquilo que acabaram de aprender”.





António Meliço Silvestre sabe do que fala, pela experiência acumulada ao longo dos anos de docência na FMUC. A satisfação dos alunos que ensinou só o vem comprovar: “Tenho aí umas ‘coisas’ dos alunos, de agradecimento, fantásticas”, refere. Mais recentemente, o ex-bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, que foi seu aluno, também reconheceu a importância de o ter tido como Professor, algo que deixou António Meliço Silvestre orgulhoso: “Fez um discurso, que passou para o papel na Revista da Ordem dos Médicos, em que disse que eu tinha sido quem mais o tinha influenciado no ensino da Endocrinologia e que eu sou o Professor que dá as melhores aulas do ponto de vista pedagógico. E isso deu-me um certo gozo. Fica simpático, não é?”, diz, sem falsas modéstias.  

Atualmente, António Meliço Silvestre, que nutre o gosto pela escrita, tem estado a compilar alguns textos, escritos ao longo dos anos, como observa: “Havia muita coisa que escrevia que até me saía bem, mas que ia parar ao caixote do lixo. Por isso, tenho aí muitos textos que estou a compilar agora”. Alguns desses textos foram já publicados em 2008, no livro “Reflexos numa Vida”.  

Mas a compilação dos seus textos não é o único plano que ocupa o pensamento de António Meliço Silvestre. Há outro, relacionado com viagens, que tem por realizar: “Tinha planeado acabar a volta ao mundo”, conta. Este é um plano que tem estado um pouco adormecido. E explica o motivo: “Tenho uma coisa chata que, fisicamente, me limita um pouco”.  

“Eu acho uma pena não estar ainda a avançar com isso, mas tenho um bocado de receio”, desabafa. “Tenho de colocar essa questão ao meu Médico Assistente, porque ainda não discuti se posso sair para o estrangeiro”. Esperemos que possa. Por cá, ficaremos a aguardar pelo seu regresso ao Penedo da Saudade, para que nos conte novas histórias suas, vindas do outro lado do Mundo. E já sem jet lag. 

por Luísa Carvalho Carreira
Fotografias gentilmente cedidas por António Meliço Silvestre e do Arquivo FMUC