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Filipe Caseiro Alves 

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O exame Harrison já não existe. Filipe Caseiro Alves, coordenador do Mestrado Integrado em Medicina (MIM) da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), fala da nova Prova Nacional de Acesso, realizada no passado dia 18 de novembro.

Quais as principais mudanças da nova Prova Nacional de Acesso (PNA)
face à anterior prova?
Esta nova PNA tem um figurino completamente diferente do da prova anterior, mas que é conhecido desde há muitos anos, porque faz parte do National Board Americano [NBME - National Board of Medical Examiners]. É uma prova que, na vez de explorar o conhecimento puro e duro e a memorização, tenta, essencialmente, explorar a capacidade de integração dos dados médicos e o raciocínio clínico.

As perguntas da prova são estruturadas, não com o intuito de verificar se a pessoa conhece o facto ‘A’ ou o ‘B’, mas sim se é capaz de interligar o facto ‘A’ com o ‘B’ e com o ‘C’ para chegar a um diagnóstico. Nesse aspeto em particular, eu diria que é uma revolução pacífica. É também uma revolução necessária, porque, claramente, irá tornar melhores médicos os futuros médicos. Claro que não é por fazerem uma prova, mas é pela forma como estudam e como se dedicam para essa prova, que, na maior parte dos casos, chega a ocupar um ano inteiro de preparação.

Penso que a nova PNA é altamente vantajosa e, por acaso, no dia da FMUC [20 de novembro], tive a oportunidade de ouvir uma das alunas dizer uma frase muito curiosa, que foi “Ao fazer esta prova, senti-me médica pela primeira vez”. É uma observação interessantíssima e que define, de facto, o reconhecimento de que, com a PNA, os alunos são capazes de perceber e de interligar o que andaram a estudar.

Acho que a nova PNA é algo que veio para ficar. Os alunos estranharam-na, como se estranha muito do que é desconhecido. E claro que houve muitas coisas que não estiveram bem, mas foi a primeira vez que se fez esta prova. Eu não estou envolvido na sua elaboração e, portanto, não conhecia as perguntas. Havia, por exemplo, perguntas de extensão exagerada, em termos de enunciado. Mas, no essencial, julgo que as virtudes superam, claramente, os defeitos e, por isso, foi um passo em frente muito bem dado.


E em que medida é que a nova PNA implica uma reestruturação do ensino da Medicina
e dos seus métodos de avaliação na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC)?
Essa é uma componente que, quando nós iniciámos esta reforma curricular, a convite do Professor Joaquim Murta, no ano letivo 2014/2015, tivemos em consideração. A ideia, na altura, foi precisamente tentar uma interpenetração e uma interligação médicas, talvez por eu ser radiologista. A Radiologia tem muito a ver com a interligação de especialidades e a conjugação de dados clínicos para se conseguir obter um determinado diagnóstico, como um patologista também necessita de informação clínica para conseguir chegar a um diagnóstico e por aí adiante.  

Acho que foi isso, fundamentalmente, que levou a que a reforma tivesse, desde a sua génese, essa preocupação, embora ainda não se falasse, na altura, na nova PNA, apesar de já se ouvir dizer que o modelo em vigor estava esgotado. Mas, essencialmente, o que esta reforma curricular conseguiu só foi possível através da estimável colaboração dos alunos, a partir dos seus canais de comunicação oficiais, nomeadamente da Associação de Estudantes, com todos os relatórios que foram produzindo ao longo destes anos e que são, não valiosos, mas supervaliosos para qualquer faculdade, juntamente com o desiderato pessoal de quem trabalhou na reforma, que, no caso concreto, fomos nós com o Gabinete de Educação Médica.

Verificámos que existia a possibilidade de tornar o curso diferente em termos de interação de conhecimentos. Vou dar-lhe um exemplo: existia, na antiga reforma, uma disciplina que se chamava Patologia Médica I. Essa disciplina, avaliada através de uma nota numa escala de 0 a 20, era composta por duas outras disciplinas, a Gastroenterologia e a Dermatologia. Como pode ver, mais azeite e água é completamente impossível! Não havia nenhum ponto de ligação. Por outro lado, existiam cadeiras afins, nas quais a mesma matéria era tratada apenas numa perspetiva médica e numa perspetiva cirúrgica, sendo que o tópico era o mesmo. Ou seja, estamos a falar da patologia ‘A’, que tem um tratamento médico e cirúrgico, mas essa mesma patologia era “desmembrada” através dos seus tipos de tratamento.

Este foi um dos grandes motores da reforma curricular, chancelada e amplamente discutida com o corpo docente e em reuniões apropriadas. Mas tocámos também noutros pontos, que tinham a ver com o aumento da exposição a gestos clínicos, que era outra coisa que não existia. Aí, a FMUC não é particularmente culpada, porque o número de alunos que entram na Faculdade não é estipulado pelo nosso livre arbítrio. É uma imposição governamental. Entrarem 400 alunos para salas onde não cabem e onde o rácio é completamente desconforme, não é algo que queiramos impor.

Chegou a ser publicado nos meios de comunicação social que Coimbra tinha o maior rácio discente-docente de todo o País. Isto são coisas que não abonam nada a favor do nosso curso e que eram, aliás, alvo de críticas reiteradas por parte dos alunos. E foi aí que também quisemos atuar. Não podíamos atuar quanto à delimitação do número de alunos porque isso era-nos vedado. E não podíamos também aumentar o número de docentes porque estávamos nos anos de crise e as contratações estavam fechadas. Havia, por isso, que ser inventivo, mas mantendo a lógica do bom ensino médico. Isso foi possível com a aposta na simulação biomédica.

A simulação biomédica foi o segundo grande eixo que a Faculdade e a sua reforma curricular quiseram desenvolver. Essa simulação biomédica foi, em boa hora, entregue ao Professor Paulo Martins, que fez um trabalho fantástico e que permitiu expor, progressivamente, mais alunos a ambientes simulados, quer ambientes de raciocínio clínico, quer ambientes de gestos médicos, sem ter necessidade de ter um batalhão de alunos para um único paciente.

Outra medida muito importante da reforma foi a exposição clínica mais precoce dos alunos. Os alunos tinham um segundo ano de Medicina em que nunca entravam num hospital e passaram, deste modo, a fazê-lo, a conhecer e a ver como tudo funciona na prática. Isso é algo que lhes estimula a curiosidade e até certo ponto os leva também a compreender um bocadinho a dinâmica da própria forma como a Medicina se organiza.

Esta reforma também quis desenvolver atividades curriculares de integração, com ações de formação conjuntas e interligadas. Era algo que já acontecia em duas disciplinas, a Bioquímica e a Biologia Celular. Estas atividades partem do problema clínico e não necessariamente do conhecimento mais atomizado da própria disciplina. Ou seja, o ponto de partida é um problema clínico que é, depois, escalpelizado sob o ponto de vista biológico e bioquímico.

E, finalmente, outra das medidas desta reforma foi o estabelecimento de um protocolo com uma empresa sediada em Coimbra e com créditos internacionalmente firmados na área da simulação médica, essencialmente de casos urgentes. Este protocolo obrigou-nos a ser criativos, elaborando casos concretos para os alunos. Vamos no segundo ano consecutivo desta iniciativa e, portanto, nós fomos capazes de o fazer, de ter um portefólio de casos clínicos virtuais que vai aumentando e que correspondem, nem mais, nem menos, à forma como a PNA atual se organiza.

Eu acho que todas estas medidas tomadas tiveram um objetivo muito concreto, não foram lançadas à toa, digamos assim. Por isso, diria que a reforma curricular foi, naturalmente, ao encontro daquilo que se esperaria que a Medicina se transformasse. Agora, também acho que é preciso fazer muito mais. E a minha incumbência com o atual diretor da Faculdade, o Professor Carlos Robalo Cordeiro, é de fazer o último ano da reforma, que é este ano e, chegado o seu fim, fazer o balanço destes seis anos. Ver o que foi feito, o que ficou por fazer e o que pode ser melhorado, mas acho que a FMUC está, claramente, no bom caminho.

O grande problema da FMUC, a meu ver, é o mesmo de outras faculdades, que é o excessivo número de alunos. E isso é impeditivo de dar um ensino de proximidade, interativo, dirigido e tutorizado. Nestas condições, é algo que só mesmo recorrendo a métodos informáticos mais massivos se torna possível, como acontece com os casos clínicos virtuais.


Apesar dessa revolução pacífica e necessária em relação à PNA, conforme falava, temos assistido a algumas críticas apontadas à nova prova, como o custo de 90 euros, a estrutura e a duração e também a diminuição do número de locais para a sua realização. Que opinião tem acerca destes factos?
Tenho uma opinião negativa, francamente. Acho que não são críticas verdadeiras. Quanto ao pagamento da prova, é óbvio que uma prova destas dá muito trabalho e que, por isso, tem de se pagar. É algo que tem custos. Quanto ao valor de 90 euros por prova, estou convencido que, havendo alunos carenciados, é possível recorrer a algum tipo de apoio social para ressarcir o valor investido na prova. Agora, para alunos que têm possibilidade de gastar dinheiro em atividades relacionadas com o seu movimento estudantil e social, como é o caso das festas universitárias, penso que esse valor não será nada.


As críticas serão apenas o resultado de um processo de adaptação à nova prova, a uma nova realidade?
Eu acho que, em Portugal, sempre que há alguma coisa que nos toca negativamente, é típico ser alvo de críticas. Nunca ninguém quer saber se é bom ou mau: é para criticar e é para deitar abaixo. E, portanto, acho que muitas dessas críticas têm a ver com isso.

Outras são críticas que advêm, obviamente, da construção de um processo que está em andamento. Isto é um processo ongoing, não é propriamente um trabalho terminado. Estou convencido que uma PNA com um conjunto de perguntas otimizado, perfeito, indestrutível, imbatível e correto a nível docimológico só vai existir daqui a alguns anos.


Referiu anteriormente o aumento do numerus clausus. Tem também aumentado o número de médicos que não conseguem aceder à especialidade pretendida. Isto significa que têm de repetir a prova ou ficar a trabalhar como médicos indiferenciados, não conseguindo progredir na carreira médica. Muitos optam inclusive por sair do País e fazer a especialidade no estrangeiro. Como prevê uma mudança deste cenário?
É uma pergunta muito difícil! Devo-lhe dizer que o movimento que levou ao aumento do numerus clausus surgiu para, de certa forma, quebrar muito da índole de tipo corporativo a que a Medicina estava ligada aos olhos do poder político. Era vista como uma profissão de privilégios, de indivíduos com uma riqueza acima da média e muito fechada. E, portanto, só havia uma saída para qualquer Governo, que era massificar. Aliás, essa massificação aconteceu com outras profissões, das quais lhe refiro a Enfermagem e os Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica. A ideia foi massificar até o custo por hora de um destes profissionais ser o mesmo de um profissional indiferenciado.

Depois, o número de faculdades também aumentou. Das cinco clássicas, passaram a existir sete e depois nove. Acho que há que repensar esta situação, claramente. O numerus clausus deve ser adaptado à realidade nacional, entendendo que deva existir uma racional distribuição dos médicos. Esse é outro problema que tem de estar em cima da mesa. Quer dizer, não podemos ter 4000 médicos concentrados em Lisboa e zero médicos a 50 quilómetros de distância dessa cidade. Neste aspeto, tem de haver uma melhor distribuição. E uma rede mais homogénea, que penso que começa a existir.

Eu julgo que a solução passa por aí também. Portanto, é necessário repensar o numerus clausus, adaptá-lo à realidade e dotar os hospitais de uma rede com o nível necessário para as zonas onde estão inseridos. Mas, em relação aos médicos, não auguro, nos próximos tempos, nada de muito positivo. Quer dizer, isto aconteceu com todas as especialidades. Eu não falei noutras profissões, mas, por exemplo, também com o Direito e a Arquitetura, a situação é idêntica. As coisas são o que são. A vida é assim.

por Luísa Carvalho Carreira 
fotografia gentilmente cedida por Filipe Caseiro Alves 


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