Do curso 
de 1956

Frontalidade até ao(s) osso(s)

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Nasceu em 1929, numa aldeia que pertence ao concelho de Alfândega da Fé, no distrito de Bragança. Foi para Angola aos oito anos de idade e voltou a Portugal em 1949, para ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). Depois do curso, repartiu a sua atividade, não só por Portugal, mas também pela Guiné-Bissau e por Moçambique. Nome incontornável da Ortopedia, conta com uma vasta carreira ligada à Medicina, através do desempenho de vários cargos na área e da docência. Sim, Norberto Canha já fez muito. Mas desengane-se quem pensa que está parado, ou que não tem novos projetos em andamento.

Em criança e ainda em Vales da Vilariça, sua aldeia natal, era já zagal de cabras e de ovelhas e guardador de vitelos: “se, eventualmente, tivesse a fatalidade, aos sete ou oito anos, de perder os meus pais, eu já estaria apto a ganhar a vida”, afirma, com praticidade, lamentando o facto de, atualmente, a maioria das pessoas terem um curso superior, mas não terem emprego na área de formação e não saberem desempenhar outras tarefas.

Talvez seja pela experiência adquirida desde tão tenra idade que preconiza um sistema de ensino através do qual as pessoas devem ter uma aprendizagem ampla e polivalente, adquirindo formação em vários domínios. E dá o exemplo do ensino da Medicina: “durante o curso de Medicina, os alunos deviam fazer estágios para adquirirem experiência em todas as áreas, como nos Serviços Gerais e em Enfermagem, até chegarem à especialidade”.

É em Angola que Norberto Canha frequenta o ensino até entrar na FMUC, e é também durante a infância e na escola que se habitua ao uso da frontalidade que lhe é tão caraterística, sem que isso signifique, no entanto, alguma rudeza no seu modo de ser. Algo facilmente comprovável pela atitude com que os próprios professores aceitavam as suas opiniões: “quando discordava, os professores permitiam-me que discordasse”, observa. Mais tarde, esse ambiente, de discussão saudável na sala de aula, também se veio a verificar durante os anos de estudante de Medicina em Coimbra. 

Entre 1938 e 1949, frequentou o ensino primário em Cassongue, depois o Colégio Alexandre Herculano, em Nova Lisboa (atual Huambo) e o Liceu Diogo Cão, em Sá da Bandeira (atual Lubango). A partir da segunda classe, a sua professora primária foi, curiosamente, a sua mãe. E foi também a sua mãe a responsável, ainda que indireta, pelo facto de Norberto Canha se ter tornado médico. “Estava no quinto ano do Liceu, em Nova Lisboa, no Colégio Alexandre Herculano”, quando a sua mãe lhe pergunta: 

- Diz-me lá, meu filho, o que queres ser na vida?

- Quero ser juiz ou advogado.

- Olha, meu filho, é um desgosto que me dás. Porque, se fores advogado, terás de defender muitas pessoas, mesmo sabendo que são culpadas e, se fores juiz, terás de condenar outras tantas pessoas, sabendo que estão inocentes. Não te quero com problemas de consciência.

É depois de uma breve pausa no discurso que conclui este episódio da sua vida: “A minha mãe morreu; decidi ir para Medicina. Foi rigorosamente isto”. Com efeito, é ainda jovem que Norberto Canha perde os seus pais, tal como indica no livro, publicado em 2018, “A Caminho de Quitaba”, no qual relata as memórias da sua infância e para o qual escolheu como imagem de capa a fotografia do seu pai e da sua mãe, conforme mostra, enquanto segura o livro nas mãos.

Concluídos os estudos em Angola e chegado a Coimbra para ingressar no curso de Medicina, Norberto Canha foi prontamente instruído acerca da vida académica: “Quando cheguei, encontrei um moço que também era de Angola, chamado Fernando Alves da Conceição, que estava já a frequentar o curso e que me disse «Olha, Canha, as regras aqui são as seguintes: primeiro, a partir das seis da tarde, tens de estar em casa, se não pode vir uma trupe e rapar-te o cabelo; segundo, os livros que tens de comprar são estes, estes e aqueles, e também um esqueleto». E eu assim fiz”.

A vivência académica levou, inclusive, a que Norberto Canha abrisse mais tarde, com a mobília da casa que teve com as suas irmãs, uma República de estudantes, situada no Largo da Conchada: “Vai ficar surpreendida: sabe qual era o nome da República? ‘Os Milionários’. E porquê? Não conseguíamos chegar a acordo com o nome a dar-lhe e, quando andávamos a transportar a mobília, um dos nós levava um chuveiro, elétrico, às costas. Uma senhora, que estava à janela de sua casa, viu-o e disse «Ó, estes são milionários!». Foi assim aprovado, por unanimidade, o nome da República”, conta, em tom de brincadeira.   

Mas a frequência de Medicina não se resumiu aos estudos. Durante o curso, Norberto Canha desempenhou diversos cargos académicos: Delegado de Curso, Presidente do Conselho da Faculdade de Medicina, Presidente do Conselho das Faculdades, Presidente do Conselho Fiscal da Associação Académica de Coimbra, Presidente da Comissão Central da Queima das Fitas e Presidente da Assembleia Magna da Associação Académica de Coimbra. E mesmo repartindo a sua atenção entre o curso e todos estes cargos, não deixou de ser um aluno empenhado, que participava nas aulas e que manteve sempre o debate de opiniões com os professores como um hábito salutar.

Relembra, divertido, aquela que talvez seja a única ocasião em que uma intervenção sua não foi bem aceite. Pelo menos, de imediato. Na aula de Propedêutica Médica, lecionada pelo Professor Egídio Aires, e depois de ouvir uma explicação acerca do ritmo cardíaco com a qual discordou, Norberto Canha levantou o dedo e dirigiu-se ao Professor, disse-lhe “Desculpe, mas isso não é assim” e explicou aquela que considerava ser a forma correta. Como resposta por parte do Professor, ouviu a frase: “Cale-se, seu burro!”. Porém, na aula seguinte, foi o próprio Professor Egídio Aires que começou a lição por perguntar à turma:

- Quem levantou o dedo na aula passada?

 “Pensei logo: temos o caldo entornado, mas lá disse que tinha sido eu”, relembra. Só que, afinal, a reprimenda do Professor foi precedida pela confirmação de que Norberto Canha estava certo quanto à sua observação:

- Quero dizer-lhe que o senhor tinha razão, mas nunca mais me faça isso!

Essa postura interventiva e ousada valeu-lhe também o louvor de Michel Mosinger, seu Professor de Anatomia Patológica no terceiro ano do curso e a quem Norberto Canha se refere, ainda hoje, como o melhor investigador que alguma vez conheceu: “No dia em que fui fazer o exame dessa cadeira, a que presidia o Professor Vaz Serra e era vogal o Professor Mário Trincão, o Professor Michel Mosinger olhou para mim e, virando-se depois para o júri, disse «Vai aqui sentar-se o indivíduo que eu conheço que tem a visão mais ampla de toda a Patologia. Convido-o já para trabalhar no meu laboratório». Apesar de tal proposta se ter vindo a revelar impossível, pois, entretanto, doutorou-se o Professor Renato Trincão e assumiu o cargo do Professor Michel Mosinger, que foi para França, Norberto Canha não deixa de relembrar, com orgulho, este episódio.



Findo o curso, inicia as suas carreiras docente e hospitalar em Coimbra, até à mobilização como Chefe de Equipa Cirúrgica do Hospital Militar na Guiné-Bissau, em 1961. À data da mobilização, Norberto Canha era Assistente de Medicina Operatória e de Técnica Cirúrgica, e tinha um filho de apenas seis meses de idade. “Quando estou a chegar a minha casa e toco à campainha, para me abrirem a porta, estava no topo da escada - até parece que a estou a ver - a empregada com o meu filho ao colo, com os olhos muito arregalados, enquanto olhava para baixo e um polícia me batia no ombro para dizer «Tenho aqui uma contrafé para si. Isto não é nada com a Polícia, mas amanhã, às 7h00, tem de estar no Aeroporto da Portela, porque está mobilizado e está lá um avião para ir para a Guiné», enquanto eu o olhava, espantado”, recorda.


Na Guiné, fazíamos todo o tipo de cirurgia, incluindo a das mutilações leprosas e da elefantíase.

É no período em que está na Guiné-Bissau que tem contacto com doentes com filariose linfática, doença parasitária comummente conhecida por elefantíase, e que se envolve no seu tratamento. “Na Guiné, fazíamos todo o tipo de cirurgia, incluindo a das mutilações leprosas e da elefantíase”, explica.  

Norberto Canha tentou tratar a doença recorrendo a todas as técnicas descritas, mas sem sucesso. Até que um dia, num momento de descanso, percebeu como poderia curar a elefantíase: “Estava em casa, com a minha mulher, debaixo de uma mangueira [árvore], à sombra, pois fazia muito calor. E estava a dormitar quando, de repente, ao pensar na doença, percebi como poderia tratá-la eficazmente”, relata. Tornou-se, assim, na “primeira pessoa no mundo a fazer a cirurgia e a chegar à cura” dessa doença, algo que, a seu ver, é um feito merecedor de uma famosa distinção: “Merece um prémio Nobel e não é só por mim, é por Coimbra, que o merece também. Até hoje, todos os doentes que operei estão curados”.

Regressou a Portugal dois anos e meio depois, retomando a docência e a prática clínica. Em 1967, conclui o Doutoramento. “Sabe quanto me deram? Deram-me 19 valores, de classificação de Doutoramento”, afirma. Ainda manuseia a encadernação da sua tese como se a tivesse escrito ontem. Folheia-a até à página pretendida, para fazer uma honesta observação: “A única coisa que está errada aqui é o chamado capilar linfático. É capilar venoso e não capilar linfático, de facto. É o único erro que tem”.



Findo o Doutoramento, foi-lhe atribuída a regência da Unidade Curricular de Ortopedia e Traumatologia, bem como a direção do Serviço de Ortopedia e Traumatologia dos Hospitais Universitários de Coimbra. Mas manteve esses cargos apenas entre 1968 e 1969, pois, entretanto, parte para Lourenço Marques [atual Maputo], a pedido de Veiga Simão, Reitor dos Estudos Gerais Universitários de Moçambique, para lecionar na Faculdade de Medicina e dirigir um Serviço de Cirurgia, onde permanece cerca de três anos. Para além da docência e da direção deste Serviço, Norberto Canha criou também um Serviço de Ortopedia no Hospital da Universidade, outro no Hospital Miguel Bombarda e foi também diretor do Laboratório de Radioisótopos.


É ao fim de vários anos de experiência acumulada na prática e gestão clínicas que, em 1984, Norberto Canha assume a presidência dos Hospitais da Universidade de Coimbra, cargo que ocupa até 1988. Hoje, o Professor Catedrático Jubilado da FMUC mantém-se ativo e assume ter ainda muito para fazer. É, aliás, um homem atento à realidade social que o rodeia, exprimindo sempre uma opinião acerca das mais diversas temáticas.  



Eu até descrevo que é uma doença nova, chamada ‘administradorite’,
porque, agora, quem manda são as estatísticas, o que é uma tolice.

Quando instado a pronunciar-se sobre a relação médico-doente na atualidade, relembra uma frase que ouviu dos professores nos seus tempos de estudante: “Na prática da Medicina, 80 por cento é simpatia e 20 por cento sabedoria”. Na sua opinião, os doentes sentem-se excluídos nos dias de hoje, pois recorrem a consultas nas quais, por vezes, os médicos nem têm tempo de desviar os olhos do computador e observá-los. “Eu até descrevo que é uma doença nova, chamada ‘administradorite’, porque, agora, quem manda são as estatísticas, o que é uma tolice”, remata.  

A crítica social faz igualmente parte dos seus livros: “Comecei a escrever em 2004, aquando da entrada de mais dez países na União Europeia”. O primeiro livro publicado data do ano seguinte e intitula-se “Nova Ordem Mundial”. Lembra-se, nessa altura, de ouvir diversos discursos políticos acerca do tema, todos versando “novas oportunidades, novos negócios e novos empreendimentos”. Oponente dessa visão, Norberto Canha refere-se ao Inglês como o idioma da “comunicação do capital e não dos sentimentos”, considerando que, devido ao foco apenas nas novas oportunidades a nível europeu, Portugal se está a tornar num “castelo cercado, sem agricultura”, atividade que considera “estrutural”.


Capas dos livros A Caminho de Quitaba e Herdeiro de Quitaba 
(retirado de https://norbertocanha.wordpress.com/)

Já o livro “A Caminho de Quitaba” é o primeiro de uma série de livros que Norberto Canha tem a intenção de continuar a publicar acerca da sua vida, partindo da infância, “até à eternidade”. O livro “Herdeiro de Quitaba” é o seu sucessor, e foi também publicado em 2018. Com entusiasmo, Norberto Canha revela que já tem a maior parte dos próximos livros redigidos, e que serão “A Caminho de Doutor”, “A Caminho de Doutorado”, “A Caminho de Professor Extraordinário”, “A Caminho de Professor Catedrático” e “A Caminho de Professor Jubilado”. “Agora, tudo o que estou a tentar escrever, acho que vai ser designado “A Caminho da Eternidade”. Estou a reunir as coisas para esse livro agora”, conta.


Mas não é apenas a redação e publicação de todos estes livros que ocupa o seu tempo, o que, na verdade, já seria bastante. Norberto Canha assume que uma das suas principais preocupações atuais é “reabilitar a Cognitaria”, referindo-se, com isso, à Associação Cognitaria S. Jorge de Milréu, atual Associação Cognitária Vasco da Gama (ACVG). Para que tal aconteça, assume que é fundamental a inexistência daquilo a que chama ‘partidarice’: “Quero que o Senhor Reitor e o Presidente da Câmara nos recebam, que as faculdades não impeçam que, passados tantos anos, o que foi boicotado por questões partidárias cesse e que Coimbra entre no caminho de um futuro feliz”, afirma, peremptório.  

A par dos livros e da reabilitação da ACVG, Norberto Canha tem ainda desenvolvido um notável e importante trabalho humanitário com a Missão Catimbó, para a qual chegou mesmo a despender quantias de verbas pessoais. Esta iniciativa conta já com três idas à Guiné-Bissau, onde Norberto Canha continua a operar doentes com elefantíase, acompanhado pelo cirurgião plástico Celso Cruzeiro e por Miguel Alexandre Silva.

Norberto Canha revela que, na terceira Missão Catimbó, contou com a generosidade dos proprietários, portugueses, do hotel onde ficaram instalados, que, curiosamente, se chama ‘Hotel Coimbra’, no qual puderam permanecer gratuitamente. Devido a essa ação generosa, sobre a qual Norberto Canha manifesta o seu agradecimento, foi possível alargar a intervenção humanitária a uma ilha do Arquipélago dos Bijagós. Em mente, está já uma quarta ida ao país: “Estou apenas a aguardar que alguém nos dê um financiamento, de cerca de 15 mil euros, para lá voltar, à Guiné-Bissau”, explica.

Uma vida tão preenchida só podia fazer-se acompanhar de inúmeras histórias e memórias, que, apesar de tão diferentes entre si, são relatadas com a mesma disponibilidade e simpatia que caraterizam Norberto Canha. Há também uma frase comum que precede cada uma delas: “Já agora, conto-lhe como foi”.
por Luísa Carvalho Carreira
Fotografias gentilmente cedidas por Norberto Canha