Outras
vozes

MISTÉRIOS DE CRONOS

VOICEmed

O Dr. Leonardo Vicente era um brilhante cirurgião que exercia no hospital de Santo Espírito em Angra do Heroísmo, onde nascera. O jovem Leonardo dera nas vistas logo nos primeiros anos de liceu Tinha uma queda inata para as ciências e para o desenho e pintura que se foi acentuando anos fora. Desenhava com extraordinária mestria, mas também tratava por tu a arquitectura e a escultura.

Muitas vezes pegava nos “mistérios” de lava basáltica e, colando aqui cortando ali, conseguia dar vida àquelas pedras negras paridas de um inferno qualquer. Mas também gostava de apanhar a urbana e viajar até às Lages, onde passava horas a ver os Apache e Galaxy da USAF ou os frágeis mas seguros Dakota da FAP levantarem e poisarem nas pistas. E desenhava os com rigor. Adolescente apaixonou-se por uma colega, filha de família fidalga assolarada em S. Bento. Adorava o sorriso da jovem que retratou com perfeição numa folha de cavalinho. Mas o amor foi contrariado pela fidalguia que não admitia que o descendente de um marujo sem nome entrasse na família de descendentes de donatário da ilha. Leonardo nunca esqueceu aquele amor da sua vida e sobretudo o sorriso enigmaticamente feiticeiro.

Acabado o liceu, rumou a Coimbra, onde cursou Medicina. Foi o melhor do curso. Convidado para a carreira académica, declinou-o para ir exercer na sua terra. Durante o curso absorvia interessado a dissecação dos cadáveres, cada músculo, cada nervo, cada tendão, enquanto os ia desenhando num caderno. A tal ponto que o corpo humano, interior e exteriormente, deixou de ter segredos para ele.

Quando voltou à ilha, sofreu uma decepção. O amor da sua vida tinha casado de acordo com o estabelecido pela família e emigrara para o Canadá. Então, dedicou-se ao trabalho com afinco. As suas mãos eram mãos de artista, de pianista, longas, finas, mas que seguravam com a mesma precisão o bisturi, o lápis ou o pincel. Tornou-se um cirurgião conhecido no país e fora. Aceitou vários convites para conferências em universidades e institutos dos Estados Unidos mas declinou sempre os que lhe surgiam do Canadá.

De repente, os mais próximos notaram que mudou física e psicologicamente. Tornou-se mais ensimesmado, pouco falador, parecia adoentado. Houve um envelhecimento brusco e deixou de aparecer no hospital ou em festas. Ora, acontece que a casa da família tinha numa sala cheia de vasos de orquídeas, um espelho enorme, num dos cantos, que era, no dizer de Leonado, um dos monos a abater no futuro por imprestável. Na moldura inferior constava em letras góticas a inscrição “Espelho de Cronos”. Leonardo nunca tinha ligado muito ao artefacto. Era mais uma de entre as antiguidades bafientas da casa. Mas um dia, em que se encontrava mais deprimido, olhando o espelho sentiu uma atracção, como que um chamamento e aproximou-se. Não se viu reflectido, mas antes o espelho aparecia baço, metálico parecendo uma porta. Experimentou colocar a mão na superfície e, para seu espanto, ela entrou. Curioso meteu o braço, depois a cabeça e finalmente todo o corpo.

De repente, entrou numa espécie de túnel escuro, num rodopio nauseante até se achar num outro espaço-tempo. Estava numa sala com uma escrivaninha antiga onde bruxuleava uma lamparina de azeite e da janela rasgada avistava-se uma praça e edifícios renascentistas. Na sala o único ocupante era ele. Mas sentiu algo esquisito. Era como se um espírito forte se tivesse apoderado do seu corpo e da sua mente para lhe determinar mecanicamente o que se passou a seguir. Sentou-se à escrivaninha e começou a desenhar o que lhe veio à cabeça: um helicóptero, um avião o esboço de um submarino que tinha visto um dia no porto da Praia da Vitória, os desenhos de partes do corpo humano que como estudante tinha esboçado. Não conseguia parar nem sobrepor o seu querer àquela hipnótica mecanização que lhe dominava as mãos. Tirou do bolso o desenho do seu amor para poder pintá-lo. Tinha que ser. Era superior a tudo. Estava ali mesmo a tela num cavalete, a palete e a caixa de tintas. Nessa altura, como que foi puxado para fora e encontrou-se de novo na sala do espelho. Lá estavam as orquídeas, como tudo o mais, no sítio. Pensou ter sonhado.

FMUC

Daí em diante, o espelho passou a ser uma obsessão. Sempre que podia lá estava à volta dele, mas só via o seu reflexo. Até que um dia, aconteceu de novo. Tudo se repetiu como da primeira vez. Voltou à sala e agora, inspirado, pegou nas tintas e na paleta e começou a pintar o rosto tão querido que estava ali á sua frente no papel cavalinho. E pintou com toda a mestria e amor o sorriso da jovem que o tinha enfeitiçado e que nunca esqueceu. Contemplou com orgulho a sua obra. E mais uma vez, de repente, se achou na sala das orquídeas. Mas reparou que tinha envelhecido bastante. Agora sabia que não era sonho, que tinha atravessado o tempo e o espaço. E o seu conhecimento médico deu-lhe a entender que essas duas viagens tinham alterado a sua biologia celular. Era a cobrança de Cronos pela violação das suas leis. Ninguém fica impune. Mas Leonardo sentia uma força superior que o impelia a desafiar o deus do Tempo. E entrou no espelho mais vezes. E numa delas, algo o impeliu para desenhar um homem.

Desenhou-o nu em perfeito equilíbrio, com os braços e pernas abertas. No fim, achou o desenho tão perfeito que pegou num compasso, apoiou o bico no umbigo do homem e traçou um círculo a toda a volta. Depois, mecanicamente, escreveu por baixo “Vitrúvio” e as suas iniciais, LV.

Cada vez mais envelhecido e mais fraco, analisava-se mentalmente, sem saber se era um espírito superior que se apropriava do seu corpo e da sua mante para extrair dele coisas do futuro ou se era ele que entrava no espírito de outrem para lhe transmitir esse conhecimento.

Tão fraco estava que já não conseguiu voltar à sala das orquídeas e do espelho. Ficou para sempre perdido algures no túnel do tempo.

No sismo violento que abalou as ilhas do grupo central em 1980, e que se sentiu fortemente na ilha Terceira, a casa do Dr. Leonardo Vicente veio toda abaixo. Não havia vestígios do médico e sob os escombros as pessoas apenas encontraram restos de móveis velhos, estilhaços de um espelho e uma orquídea que escapou ilesa no seu vaso.

As ilhas de bruma são mágicas, como lembrava Vitorino Nemésio. A força telúrica das ilhas açóricas gera outros mistérios diferentes dos mistérios de pedra basáltica, dizia Natália Correia.


Sousa Dinis
Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça jubilado

Joaquim José de Sousa Dinis nasceu em Marrazes, no distrito de Leiria, em 1942. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, cidade na qual ainda hoje vive. Foi delegado do Procurador da República de 1967 até 1973, mas viu o seu trabalho interrompido entre 1968 a 1970, para cumprir o serviço militar em Angola.

É Juiz conselheiro jubilado e sócio fundador da Associação Portuguesa de Escritores Juristas. Para além de ter ganho o prémio "Eça de Queirós", em 1994, na modalidade de conto, Sousa Dinis publicou as obras "Varandas Para o Atlântico", "Xeque ao Rei Capelo", em 2003, e "Joaninha, Avô, Avô...", em 2013.


Voltar à newsletter #1