Do curso 
de 1959

Alexandre Linhares Furtado

O astronauta da Medicina portuguesa

VOICEmed




“Assim de repente, é complicado pensar em alguma coisa que nunca tenha dito”, confessa Alexandre Linhares Furtado. Foi diretor do serviço de Urologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, e o médico responsável pelo primeiro transplante realizado em Portugal. Tem 84 anos e um hábito incontornável: sempre que vai aos Açores, a primeira coisa que faz é ver o mar que o viu nascer. Ao longo das mais de duas horas de conversa, sentado à secretária no seu escritório, e enquanto vai clicando nos botões do rato, refere várias vezes que a intensidade com que viveu lhe apagou muitas memórias. Contudo, as que tem estão bem marcadas, vívidas. Como a do início da Segunda Guerra Mundial.

“Tinha seis anos, lembro-me que foi no final do verão, setembro. E isso foi um dia de Juízo na minha família”. O pai, antigo emigrante nos Estados Unidos da América, enveredara pelo cultivo de ananases, no regresso a casa. A exportação era feita, no essencial, para duas cidades, Londres e Berlim. A última, aliás, dava a alcunha a Fajã de Baixo: “a terra onde nasci era conhecida em São Miguel como a cidade de Berlim, uma zona relativamente rica naquele panorama”. O eclodir do conflito mudou as regras do jogo. “As dificuldades económicas dos meus pais surgiram com a guerra porque o ananás, suponhamos que valia dez, passou a valer 0,25. Era o grande meio de subsistência e deixou de se cultivar”, relembra Linhares Furtado.

A época difícil levou a interrupções e alterações no percurso académico. Entre a quarta classe e a etapa seguinte houve um ano de intervalo. “Depois, quando acabei o curso ainda não havia disponibilidade económica. Quis ir para a América, mas a minha mãe teve um desgosto tão grande que eu desisti. Entrava lá com facilidade, já sabia que podia ter um emprego dentro da Universidade da Pensilvânia”. Para trás ficou a paixão pela Física, que continuou a alimentar ao longo da vida, e a ideia de se tornar físico nuclear. Para Alexandre Linhares Furtado, a única hipótese passou a ser a Escola do Exército, designação dada à data à atual Academia Militar, responsável pela formação dos oficiais do Exército Português. “Dava roupa, cama lavada, etc. Quando já estava com o processo a decorrer, surge a hipótese de uma bolsa de estudo que me foi concedida pela Junta Geral, que era de 400 escudos por mês [nota do autor: dois euros]”.


Dava-se Química Fisiológica na antiga maternidade, a Histologia era dada num conjunto de edifícios que talvez tivesse sido a cavalariça do palácio em frente ao João de Deus, onde é agora a Administração Regional de Saúde do Centro 

No Atlântico ficaram o arquipélago açoriano e as recordações familiares. No continente surgiu Coimbra. “Era um meio mais barato” que Lisboa ou Porto. Uma das imagens que mais marcou Linhares Furtado foi a primeira vez que viu a Alta, a zona onde atualmente se ergue todo o Polo I da Universidade de Coimbra. “Parecia ter sido bombardeada... Havia uma casa de pé, que pertencia ao professor Bissaya-Barreto”, ilustra. De resto, as aulas do curso de Medicina eram esparsas. “Dava-se Química Fisiológica na antiga maternidade, tal como Histologia, onde é agora a Administração Regional de Saúde do Centro, em frente ao João de Deus”. “As aulas começavam quando começavam”, o que causou enorme espanto a alguém que sempre pautou a sua postura pela pontualidade. Apesar disso, Linhares Furtado faz questão de referir que “havia professores muito exigentes e cumpridores, mas a própria dinâmica social era completamente diferente do que é atualmente, menos organizada”.


A pergunta torna-se inevitável: Lisboa e Porto, ao nível da Medicina, eram similares, ou havia outro tipo de estrutura? “Lisboa tinha já uma boa faculdade de medicina, que ainda hoje é um edifício lindíssimo, e o Porto também já tinha um hospital muito bom. Depois foram construídos o Santa Maria e o São João, que são grandes hospitais, e que se têm mantido ao longo de cerca de 60 anos”. Os dois seriam inaugurados na década de 1950, após mais de dez anos de construção - o Santa Maria em 1953 e o São João em 1959, desenhados pelo alemão Hermann Distel, que teve também a seu cargo o que poderia ter sido o novo hospital de Coimbra. “Ele estava projetado na mesma altura dos de Lisboa e do Porto. Tinha o mesmo estilo, mas houve tanta discussão que ainda vim apanhar essa fase, já como primeiro assistente, e representei a faculdade em algumas reuniões”, recorda Linhares Furtado.


O novo edifício dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) só seria inaugurado já em 1987, em Celas. O antigo médico considera-o um marco indelével, mas ressalva que já se nota a passagem do tempo: “a nível arquitetónico, no aspeto funcional, é um edifício excecional. Agora, já lhe puseram uns excertos...”. Para si, a grande falha talvez esteja na articulação com o ensino, dado que “não é um hospital faculdade, no verdadeiro sentido da expressão”, como os já referidos Santa Maria e São João, que “têm uma construção de raiz, com belíssimas instalações para uma faculdade de medicina”.




Contudo, a evolução em relação às antigas instalações, no Colégio de São Jerónimo e no Real Colégio das Artes, é por demais evidente. Quando questionado sobre as condições à época, Linhares Furtado é lesto em classificá-las como “horrorosas”. “Quando eu penso nisso...”, prossegue, relembrando que conseguia saber a temperatura exterior aproximada através de um pequeno pormenor. “Saía de uma sala de operações, que não tinha termómetro, mas que tinha ora sobreaquecimento ora frio imenso, só com a bata em cima do corpo. Atravessava o claustro e, nessa altura, havia uma torneira que estava sempre a pingar - quando havia gelo, eu sabia que estavam -4ºC”.


A criança estava roxa, a morrer. Já havia um grande à vontade entre todos e eu disse
«Isto só há uma coisa a fazer, uma traqueostomia» 

É precisamente nos antigos Hospitais da Universidade de Coimbra que se começa a desenhar uma etapa fundamental – o primeiro transplante, provavelmente um pequeno passo para Linhares Furtado, mas um grande passo para a medicina portuguesa. A referência não é inocente, dado que a intervenção é concretizada no mesmo dia em que Neil Armstrong pisa a Lua – o calendário marca 20 de julho de 1969. Recue-se mais de uma década, ainda o jovem Linhares Furtado não era licenciado, para se perceber melhor o que levou a esse dia. “Como não tinha família aqui, tinha amigos, mas não tinha família, comecei a frequentar a urgência, mesmo durante a noite, passava lá muitas horas”, refere. “A primeira traqueostomia que fiz, devia estar no meu quarto ou quinto ano. Um dia apareceu uma criança de três ou quatro anos, com uma larangite aguda, e os médicos de serviço ficaram aflitos. A criança estava roxa, a morrer. Já havia um grande à vontade entre todos e eu disse «Isto só há uma coisa a fazer, uma traqueostomia». «Faça-a você!», foi a resposta. Já tinha estudado todas essas coisas de urgências e salvou-se a criança.”









Fazer urgências sempre foi uma espécie de paixão de Linhares Furtado, e o facto de não existir diálise em Coimbra acabou por funcionar como uma espécie de catalisador. “Fiz muita urgência em cirurgia geral e apaixonava-me por aquilo, por motivos emocionais e científicos. A verdade é que havia muitos traumatizados. Traumatizados crânio-encefálicos, torácicos, abdominais e, apesar de conseguirmos resolver os problemas, muitos deles morriam por insuficiência renal, por não haver diálise. Os rins sofriam com o choque traumático, com perda de sangue, deixavam de funcionar. Se houvesse uma diálise salvam-se muitos desses doentes”. Daí a perspetivar e planear um transplante foi algo natural.

As condições eram muito más, tinha muito receio de qualquer infeção, não queria levar o doente lá abaixo

20 de julho de 1969. “A concentração no doente era tal que eu não tenho nenhuma lembrança do Homem ir à Lua. Acho que já tinha uma televisão a preto e branco, mas nem sei se vi imagens, se não. As minhas recordações são construídas a posteriori. Pelo contrário, as imagens que tenho do transplante, do decurso da operação, essas são reais, do momento”, reitera Linhares Furtado. A cirurgia correu bem, tal como o pós-operatório, até à véspera do paciente ter alta. “Fez, provavelmente, uma pequena rejeição ou uma pequena trombose da artéria, nunca ficou bem esclarecido”. Perante as possibilidades de diagnóstico, colocou-se a hipótese de levar o doente à Radiologia. “As condições eram muito más, tinha muito receio de qualquer infeção, não queria levar o doente lá abaixo”. Decide dar-lhe mais uma dose de soro antilinfocitário. “Desencadeou uma reação brutal na coxa, de tal forma violenta, com febre gravíssima, que tivemos de decidir. Ou perdemos o doente, ou o doente morre, porque aquilo podia transformar-se em sépsis de um momento para o outro. Suspendemos a medicação e perdeu o rim. Voltou à diálise, mas não havia possibilidade de usar um rim de cadáver. Só em 1976 é que surgiu a lei que o permitia”.







Após realizar o primeiro transplante em Portugal, Linhares Furtado passou também pela política, assumindo o cargo de deputado à Assembleia Nacional. “Comecei depois do primeiro transplante e foi em consequência disso, em parte. Houve uma repercussão muito grande e não há dúvida que procuraram pessoas que fossem, de algum modo, bandeira de alguma coisa”. Era um candidato politicamente independente, condição que impôs como obrigatória, mas tinha de ser deputado através de um partido. “Não era da União Nacional, pelo contrário, em muitas coisas estava à esquerda e sofri as consequências disso. A insatisfação com a situação geral do país era muito grande, nomeadamente na saúde”. Trabalhou de perto com questões ligadas à educação e às políticas coloniais, mas é a intervenção na área da saúde que lhe acaba por trazer dissabores. “Há uma greve de médicos que apoiei. Não foi uma coisa pública, mas era regida por gente radical de esquerda. Houve uma reunião com o ministro da Saúde em Lisboa e com deputados aqui de Coimbra e exaltei-me demasiado com o ministro”, explica Linhares Furtado. Quinze dias depois, o resultado. “Vem um irmão de Veiga Simão aqui a casa: «Você vai para África como cirurgião geral»”.


Mantivemos a respiração artificial em cima de uma maca, no velho hospital, sem as mínimas condições 

O regresso a Portugal dá-se já algum tempo após o 25 de abril de 1974. Retoma as suas funções enquanto diretor do serviço de Urologia e, em 1980, faz o primeiro transplante renal com um rim de um cadáver. “Surgiu um paciente com um esfacelamento cerebral completo, primo em primeiro ou segundo grau de alguém que trabalhava connosco. Mantivemos a respiração artificial em cima de uma maca, no velho hospital, sem as mínimas condições”. A colheita do órgão tem início ao fim de duas horas, com o coração completamente parado há cinco minutos, após a suspensão da respiração artificial. A recetora, uma doente de risco, “fez uma rejeição que foi difícil de dominar, mas só faleceu 12 anos depois, com um enfarte do miocárdio e com o rim a funcionar lindamente”, recorda Linhares Furtado. Seguem-se os transplantes renais pediátricos e os hepáticos, continuados pelo filho, Emanuel Furtado. O primeiro transplante hepático dos HUC é a 26 de outubro de 1992 – “a dona Fátima, que ainda é viva”.




Viria a reformar-se em 2003. Dos quatro filhos, só um é médico. “Por iniciativa própria, contrariando o conselho do pai”, esclarece o antigo diretor do serviço de Urologia. “Sentia que o futuro médico seria quase um serviçal dos políticos”. Já em 2011, quando é galardoado com o Prémio Nacional de Saúde, deixa críticas à forma como o poder político se imiscui na ação médica. “Qualquer coisa de inovação tem que ter sempre o administrador na fotografia e são eles que transmitem, mas se é um facto negativo, é o médico que vai a tribunal”, desabafa, enquanto recorda que uma vez também chegou a ser arguido, mesmo tendo seguido todas as regras.

Alexandre Linhares Furtado é um homem de convicções sérias. E de amores. Por aquela que foi a sua profissão e pela sua ilha natal, São Miguel. “Não conheço Cuba, não conheço o Haiti, não conheço nada disso, mas em São Miguel descubro sempre coisas novas. A tranquilidade é uma maravilha”.


por Ana Carolina Marques e Paulo Sérgio Santos
LCS.FMUC | Laboratório de Comunicação em Saúde