Do curso 
de 1951

António Poiares Baptista

Uma história entranhada na pele

VOICEmed


No escritório guarda o seu primeiro microscópio, herdado do pai, e todos os outros que lhe seguiram - dezasseis no total. Pendurados na parede estão quadros de autoria própria e, na secretária, o francês Le Monde. Mas é ao olhar a estante que se veem os inúmeros livros, os muitos prémios e algumas fotos. Há um retrato que se destaca: o da mulher, Claude.


António Poiares Baptista nunca perdeu tempo a pensar no que queria ser. A medicina sempre esteve no seu íntimo, por confessa influência de familiares, e o caminho era certo. “Toneca”, como é tratado carinhosamente pelos mais próximos, passou a sua meninice em Quelimane e Inhambane, em Moçambique, juntamente com o irmão mais velho, a mãe e o pai, médico dos quadros do Ultramar. Foi através do pai, Calisto, que assistiu a muitas inspeções feitas à população nativa, das quais carinhosamente guardou lâminas e o microscópio que o “médico do mato”, como se autointitula nas suas memórias, usava.


Lâminas compiladas por Calisto Baptista,
pai de António Poiares Baptista




Com nove anos regressou a Portugal, país do qual tinha saído com apenas alguns meses de idade. Viveu em casa do tio, também ele médico, e só voltaria a ver os seus pais anos mais tarde, já como caloiro da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). A dermatologia viria depois, mas garante que, das cadeiras clínicas, “foi das mais chatas”. “Não havia docente de Dermatologia. Quem sabia um pouco da área, ainda que fosse mais venereologia do que dermatologia, era um professor que se chamava Rocha Brito”, recorda Poiares Baptista. A cadeira, criada na reforma da República, em 1911, era relativamente recente e a faculdade não tinha ninguém dedicado ao ramo. “Na altura venereologia era o mais importante. Quem tivesse mais comichão, menos comichão… que se coçasse!” diz, entre risos.

Pela falta de profissionais na área, e também pela insistência de alguns amigos do tio, que viam potencial no jovem estudante, rumou à especialização em Paris, “a Meca da dermatologia de então”. Chegou à capital francesa sem conhecer nada, nem ninguém. Na cidade das luzes, conhece aquele que viria a ser uma das grandes figuras da literatura portuguesa dos séculos XX e XXI, Urbano Tavares Rodrigues, à data leitor de Português em Sorbonne. “Morávamos perto um do outro e encontrávamo-nos à quinta-feira à tarde, porque ele dava aulas”. Urbano era, assim, a única ligação que tinha à cidade e o responsável, mesmo sem saber, pelo primeiro encontro entre Poiares Baptista e a sua futura mulher, Claude Masson.


Tirei um cartão à sorte e saiu o da minha mulher.
 E assim foi, por mero acaso.

Numa dessas quintas-feiras, Urbano pregou-lhe uma espécie de uma partida: “ele disse «Está aqui um jovem médico português que gostaria de conhecer colegas, jovens, para contactar» e a minha mulher e mais umas pessoas deram-me um cartão. Fiquei com uma molhada de cartões”. Claude era aluna da Licenciatura em Espanhol, mas entre as cadeiras de opção constava Literatura Portuguesa.


O tempo foi passando e Poiares Batista foi conhecendo outras pessoas, principalmente portugueses, com quem se costumava reunir, à noite, no café Luxemburgo. “Diziam que eu não ligava a ninguém, que tinha uma molhada de cartões. Até que um dia disse «Epá, está bem». Tirei um cartão à sorte e saiu o da minha mulher. E assim foi, por mero acaso.” Quando voltou a Portugal, cinco anos depois, vinha de anel no dedo e com uma jura ao Estado francês: de não se aproveitar do facto de ser casado com uma francesa para pedir nacionalidade.


Foi a primeira pessoa que eu vi a fazer uma consulta à qual chamávamos «o circo».

Mas o sol nacional foi de pouca dura e rumou, uma vez mais, a terras gaulesas, desta feita para realizar o doutoramento como bolseiro da Gulbenkian. Foi lá que conheceu Robert Degos, “um patrão e um homem excecional”, protagonista de vários métodos pioneiros aos olhos do jovem médico português. “Foi a primeira pessoa que eu vi a fazer uma consulta à qual chamávamos «o circo»”, conta. Nas suas aulas, os doentes vinham até ao anfiteatro – os senhores em cuecas e as senhoras em combinação – local onde eram vistos e discutidos. “Ele chegava ao ponto de dizer «c'est pas quesque c'est» [NdR: «Não sei o que é»]. Dava um certo conforto aquela assunção de humanidade e humildade”, relembra.

A coleção de microscópios
e as medalhas comemorativas
na estante do escritórios

A segunda estadia em Paris quase lhe valeu o nome num tumor de pele, não fosse interpelado pelas hierarquias do tempo. O acantoma de células claras, tumor da pele também conhecido por acantoma de Degos, foi descrito por Poiares Baptista e pelo seu colega de anatomia patológica. “Na altura, qualquer trabalho que o patrão fizesse tinha de ter o nome dele. Era por ordem de importância hierárquica: o nome do patrão, o nome do assistente, o nome do interno e o nome do desgraçado que era estagiário, que na altura era eu”, ri-se O ‘Patron’ Degos seria, mais tarde, padrinho do doutoramento de Poiares Baptista.

fmuc
Discussão de um doente na aula de Degos
Nunca se interessou por grandes cargos, mas o destino fez questão de lhe trocar as voltas. Enquanto docente de Dermatologia da faculdade, da qual saiu jubilado em 1997, Poiares Baptista foi diretor dos Hospitais da Universidade de Coimbra de 1974 a 1978, e Presidente do Conselho Científico da FMUC entre 1978 e 1982. “A seguir ao 25 de abril, a direção do hospital foi-se embora, demitiram-se. Quem foi nomeado para diretor do hospital, depois de muito me aborrecerem, fui eu”, explica.

Entre tudo o que desempenhou, a meio da década de 1970, chegou-lhe um convite inesperado. Recebeu uma chamada do ministro da Educação, “no tempo em que só havia um telefone nos antigos hospitais em Celas”, a pedir que fosse reitor, cargo que recusou pela surpresa da proposta e por questões de saúde de Claude. “Safei-me! Por um motivo chato, mas ainda assim”. No entanto, não se livraria da vice-reitoria no mandato de Rui de Alarcão, ao encabeçar os pelouros de Medicina, Farmácia e Estádio Universitário, de 1982 a 1990 – “Ele queria um tipo de medicina. Aí não pude dizer que não”.

António Poiares Baptista
como vice-reitor 
no mandato 
de Rui de Alarcão








Achei aquilo formidável de um tipo que tinha tudo para ser um ‘cagão’,
como se costuma dizer, mas não era.

O cargo conceder-lhe-ia um encontro com o passado, quando conheceu Samora Machel, então Presidente da República de Moçambique. Em conversa referiu que tinha vivido a infância no país africano e que o pai era médico. Depois de uma troca de palavras, o pano caiu. “Samora Machel tinha sido enfermeiro auxiliar no Hospital Miguel Bombarda, no qual o meu pai trabalhara e fora diretor”, explica. Quando percebeu que estava perante o filho do “médico do mato”, não escondeu a alegria. "Doutor Calisto? O meu diretor! Chamavam-lhe ‘o ventoinha’, metia o nariz em tudo”, contou o Presidente.


Poiares Baptista tinha admiração por ele e confessou que só conheceu duas pessoas com um olhar tão “penetrante”. Uma delas era Samora Machel, “uns olhos vivos”, e a outra Miguel Torga, “com uns olhos de águia”. Antes de partir para Lisboa, o Presidente fez questão de se despedir do filho do seu diretor. “Achei aquilo formidável de um tipo que tinha tudo para ser um ‘cagão’, como se costuma dizer, mas não era”. O encontro foi, então, um dos episódios mais marcantes da sua passagem pela reitoria. E caricatos, terá havido algum? “O episódio mais caricato talvez tenha sido uma casa de banho de uma república que caiu no andar de baixo.”


Antes de largar a carreira de professor, em 1997, “Toneca” ainda teve tempo para ser diretor da Faculdade de Medicina. 1997 foi também o ano em que deixou para trás o título de cônsul honorário de França em Coimbra. O título de membro da Academia Francesa de Dermatologia, garante, só deixa quando fechar os olhos.


Poiares Baptista nunca se separou verdadeiramente de França e o mesmo se pode dizer de sua mulher que, depois de tantos anos, ainda não se tinha adaptado a Portugal. “Era francesa chauvinista”. Os filhos metiam-se com ela, perguntavam-lhe do que gostava no país. “Dizíamos-lhe que primeiro era a França, segundo era a França, terceiro a França, quarto a França e quinto Portugal”. Nunca se adaptou muito, só à praia e à comida. “Gostava muito de bacalhau”, recorda o dermatologista.

Fotografia de António e Claude





A casa, perto do Instituto Geofísico, foi comprada às escondidas de Claude, que sempre pensou voltar para França quando o marido se reformasse. Da varanda não se vê Paris, mas acompanha-se o movimento da cidade, observam-se as idas e vindas dos estudantes ao longo das Escadas Monumentais e, em dias bons, é a Serra da Boa Viagem, no fim do horizonte, que encerra a vista. No conforto da sala, escuta-se uma melodia de um canário amarelo que Claude lhe deixou e, nas paredes, há obras de pintores que comprou em antiquários.


Poiares Baptista não foi feito para estar parado. Depois do fecho do consultório na Rua da Sofia e da morte da mulher, deixou “os doentes em paz” e dedicou-se à pintura, ao desporto e a todos os que queiram saber um pouco da sua história. Na natação bate recordes como atleta federado pela Associação Académica de Coimbra, mas admite que “em miúdo só servia para preencher estafeta e fazer número”. Costuma dizer aos mais novos para não desanimarem: se ainda não bateram nenhum recorde, “daqui a 60 anos vão bater”. Os olhos, esses, não saem de Lionel, nadador do Algés e principal adversário de “Toneca”. “É um bom nadador. Ainda por cima foi oficial da marinha”. Confessa-se admirado por não saber como o desportista sénior, “magrito e meio marreco”, consegue nadar. Brinca com o lisboeta, que lhe costuma deixar uma garantia: “esteja descansado que só daqui a dois anos é que bato os seus recordes!”.

Medalhas e prémios de Natação




O “português mais francês de todos”, como diziam os amigos gauleses, tem muitas qualidades, mas guardar sabores não é uma delas. “Podem-me dar uma refeição muito boa, passados oito dias já nem me lembro”, conta. Numa das ocasiões em que se deslocou a França, pelas ligações com a escola de dermatologia, foi jantar a um restaurante “chiquíssimo”, do prestigiado ‘Chef’ Bocuse. Lembra-se perfeitamente do caminho, da decoração do edifício, do barrete e da bandeira francesa bordada na gola branca. “Agora, não me perguntem o que comi, porque já não me lembro”, graceja.

Ao contrário das papilas gustativas, a memória não o atraiçoa quando folheia o anuário das caricaturas de Medicina de 1951 e regressa, momentaneamente, ao passado. De todas aquelas pessoas, sobram apenas cerca de dez. Voltam as histórias. Relembra Amália, presença assídua em tempos de Queima das Fitas, as peripécias entre os professores Bissaya Barreto, “um conquistador”, e Rocha Brito, e os momentos pós rasganço, a pé pelas ruas de Coimbra, coberto apenas com a capa. Percorre álbuns de fotografias, fala dos filhos e da neta, que quis Engenharia Biomédica. De Ançã, que pinta vezes sem conta. Fala porque é, no fundo, um contador de histórias, que ficam entranhadas na pele de quem o escuta. 


por Ana Carolina Marques e Paulo Sérgio Santos
LCS.FMUC | Laboratório de Comunicação em Saúde



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