Uma história entranhada na pele
Com nove anos regressou a Portugal, país do qual tinha saído com apenas alguns meses de idade. Viveu em casa do tio, também ele médico, e só voltaria a ver os seus pais anos mais tarde, já como caloiro da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). A dermatologia viria depois, mas garante que, das cadeiras clínicas, “foi das mais chatas”. “Não havia docente de Dermatologia. Quem sabia um pouco da área, ainda que fosse mais venereologia do que dermatologia, era um professor que se chamava Rocha Brito”, recorda Poiares Baptista. A cadeira, criada na reforma da República, em 1911, era relativamente recente e a faculdade não tinha ninguém dedicado ao ramo. “Na altura venereologia era o mais importante. Quem tivesse mais comichão, menos comichão… que se coçasse!” diz, entre risos.
Pela falta de profissionais na área, e também pela insistência de alguns amigos do tio, que viam potencial no jovem estudante, rumou à especialização em Paris, “a Meca da dermatologia de então”. Chegou à capital francesa sem conhecer nada, nem ninguém. Na cidade das luzes, conhece aquele que viria a ser uma das grandes figuras da literatura portuguesa dos séculos XX e XXI, Urbano Tavares Rodrigues, à data leitor de Português em Sorbonne. “Morávamos perto um do outro e encontrávamo-nos à quinta-feira à tarde, porque ele dava aulas”. Urbano era, assim, a única ligação que tinha à cidade e o responsável, mesmo sem saber, pelo primeiro encontro entre Poiares Baptista e a sua futura mulher, Claude Masson.
Numa dessas quintas-feiras, Urbano pregou-lhe uma espécie de uma partida: “ele disse «Está aqui um jovem médico português que gostaria de conhecer colegas, jovens, para contactar» e a minha mulher e mais umas pessoas deram-me um cartão. Fiquei com uma molhada de cartões”. Claude era aluna da Licenciatura em Espanhol, mas entre as cadeiras de opção constava Literatura Portuguesa.
O tempo foi passando e Poiares Batista foi conhecendo outras pessoas, principalmente portugueses, com quem se costumava reunir, à noite, no café Luxemburgo. “Diziam que eu não ligava a ninguém, que tinha uma molhada de cartões. Até que um dia disse «Epá, está bem». Tirei um cartão à sorte e saiu o da minha mulher. E assim foi, por mero acaso.” Quando voltou a Portugal, cinco anos depois, vinha de anel no dedo e com uma jura ao Estado francês: de não se aproveitar do facto de ser casado com uma francesa para pedir nacionalidade.
Mas o sol nacional foi de pouca dura e rumou, uma vez mais, a terras gaulesas, desta feita para realizar o doutoramento como bolseiro da Gulbenkian. Foi lá que conheceu Robert Degos, “um patrão e um homem excecional”, protagonista de vários métodos pioneiros aos olhos do jovem médico português. “Foi a primeira pessoa que eu vi a fazer uma consulta à qual chamávamos «o circo»”, conta. Nas suas aulas, os doentes vinham até ao anfiteatro – os senhores em cuecas e as senhoras em combinação – local onde eram vistos e discutidos. “Ele chegava ao ponto de dizer «c'est pas quesque c'est» [NdR: «Não sei o que é»]. Dava um certo conforto aquela assunção de humanidade e humildade”, relembra.
A segunda estadia em Paris quase lhe valeu o nome num tumor de pele, não fosse interpelado pelas hierarquias do tempo. O acantoma de células claras, tumor da pele também conhecido por acantoma de Degos, foi descrito por Poiares Baptista e pelo seu colega de anatomia patológica. “Na altura, qualquer trabalho que o patrão fizesse tinha de ter o nome dele. Era por ordem de importância hierárquica: o nome do patrão, o nome do assistente, o nome do interno e o nome do desgraçado que era estagiário, que na altura era eu”, ri-se O ‘Patron’ Degos seria, mais tarde, padrinho do doutoramento de Poiares Baptista.
O cargo conceder-lhe-ia um encontro com o passado, quando conheceu Samora Machel, então Presidente da República de Moçambique. Em conversa referiu que tinha vivido a infância no país africano e que o pai era médico. Depois de uma troca de palavras, o pano caiu. “Samora Machel tinha sido enfermeiro auxiliar no Hospital Miguel Bombarda, no qual o meu pai trabalhara e fora diretor”, explica. Quando percebeu que estava perante o filho do “médico do mato”, não escondeu a alegria. "Doutor Calisto? O meu diretor! Chamavam-lhe ‘o ventoinha’, metia o nariz em tudo”, contou o Presidente.