Rui Miguel Fragas
Tudo o que sobre mim avança está dentro da minha
cabeça. A culpa não é minha nem da doença que se
avizinha, silenciosa e crua.
Não foi a minha cabeça que inventou o colapso do
mundo, foi o mundo que insidioso me entrou por
uma frincha, uma nesga do olho, um ossículo do
ouvido, mendigo que sem pedir licença se instalou
no asilo da minha cabeça.
Não são as paredes nem as janelas do asilo que
gritam, não sou eu garanto-vos: é o louco fechado no
quarto, o mundo.
Que vejam vocês metade do eu que vi e que dessa
metade entendam só metade do que nos meus olhos
desenhou a perfídia da matéria, essa velha louca.
Hoje estou todo vestido de negro, desde a fonte da
alma às unhas sujas dos pés, desde o roxo da
gangrena ao verde baço que me envolve.
E lá fora os sinos repicam, repica cá dentro o mesmo
grito, o berro do minuto, o sangue do segundo, a
carne viva do instante, o retrato do mundo.
Já não sei onde acabo ou começo e onde o mundo
começa ou acaba: tenho dois olhos e estranho seria
que vissem os dois o mesmo, porque um é buraco
cego e vê quase tudo e o outro é vesgo e só vê e
ouve o que não deve.
Dos olhos à cabeça e da cabeça aos dedos das mãos
quantas traições, quanto comércio de ideias. Não
estranhem assim se endoideço, estranho seria se isso
não acontecesse, se a alma me cegasse e depois,
definada, emudecesse.
2017
Nota: o título do poema replica o título de um quadro de Mário Eloy
Nascido no ano de 1964 em São Miguel de Poiares, distrito de Coimbra, Rui Miguel Fragas (pseudónimo de Rui Féteira) é escritor e professor. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Coimbra e foi co-fundador, na Figueira da Foz, do grupo de teatro "Páteo das Galinhas". O seu primeiro livro - “O Nome das Árvores” – foi lançado em 2014. Desde então, para além de outros títulos, já publicou vários poemas e contos nas revistas “Alma Azul” e “Aeroplano”. “A Última Rodada” é a sua mais recente obra, publicada em 2017.